sábado, 26 de dezembro de 2009

Pista da semana - O relógio da Torre da Igreja Matriz de Moncorvo


Segundo relato de 1758 do pároco de Torre de Moncorvo, a povoação vizinha de Santa Cruz da Vilariça tinha sido abandonada a pouco e pouco por quem lá vivia, no início do século XIII, transferindo-se para Moncorvo. A razão, com o padre a dar foros de veracidade à versão popular, teria sido “pela multidão de formigas, que não só faziam dano considerável em todos os víveres, mas aos mesmos viventes lhes causavam notável opressão”. Pelo que, “resolvendo-se a evitar estes incómodos”, as gentes se transferiram “para o pé do monte Reboredo, onde havia umas casas de que era senhor um homem chamado Mendo”, com uma torre onde domesticara um corvo: daí, Torre de Moncorvo.

Na verdade, uma das explicações que mais tem sido empregue para achar este topónimo tem sido a existência de uma torre, pertença de um senhor local de nome Mendo Curvo. A figura existiu, há documentos que o comprovam. Foi um chefe militar, que liderou a guerra de Reconquista nessa zona e que, por isso, terá sido recompensado com terras e foral pelo rei leonês Fernando I, por volta de 1064. Depois, a situação de vassalagem dos senhores de Moncorvo terá passado para Afonso Henriques, em 1140, com o território raiano a ser integrado no novo país, chamado Portugal.

Augusto de Pinho Leal, no seu Portugal Antigo e Moderno, refere que, “vendo D. Afonso II que a nova povoação ia progredindo à custa da antiga, que se ia despovoando, fez mudar em 1216, para Moncorvo, o resto dos habitantes de Santa Cruz”. E dá outra explicação possível para o topónimo: corruptela de Mons Curvus, nome que os romanos deram ao adjacente monte de Reborêdo (que tem forma de curva).

Tendo começado por ser em Santa Cruz da Vilariça, tendo-se transferido ou sido construída de raiz em Moncorvo, existiu de qualquer modo ali uma torre (castelo). O conjunto era equipado com uma torre relojoeira. Sabe-se que essa torre ruiu cerca de 1670 e que a sua pedra foi utilizada na construção de outros edifícios.

Pouco antes da torre ir abaixo, o mecanismo do relógio foi mudado para a torre da Igreja Matriz, edifício começado a construir em 1554 e só terminado cerca de um século depois.

A primeira informação de que dispomos sobre o relógio data de 1639. António Júlio Andrade, no Dicionário Histórico dos arquitectos, mestres-de-obras e outros construtores da Vila da Torre de Moncorvo refere que, nessa data, um relojoeiro castelhano, Bartolomeu Sanchez, arrematou por 2.280 réis o concerto do relógio.

Eugénio Cavalheiro e Nelson Rebanda, em A Igreja Matriz de Torre de Moncorvo falam de reparações documentadas no relógio para os anos de 1702, 1719, 1740 e 1746. António Júlio Andrade, na obra supracitada refere os relojoeiros António Ferreira (1670), Manuel Alves de Sousa (1692), Simão Rubio (1702), M. Fernandes (1719), João Teixeira Garrancho (1740), o ferreiro de Urros (1746), Pedro de la Peña (1746), Frei Domingos de Santana (1803), Miguel Federico de Morais Leal (1843), António de Sousa Cardoso (1844) e João Teixeira Lopes (1859). Presumivelmente, todos eles terão tido acção de manutenção e concerto sobre a maquinaria do relógio.

Mas o caso mais interessante relaciona-se com um mecanismo, ligado ao relógio, e que não se sabe hoje se foi total ou parcialmente criado pela lenda. Corógrafos como António Carvalho da Costa, José Avelino de Almeida ou Augusto de Pinho Leal referem, mais ou menos pelas mesmas palavras, a existência de um zimbório a coroar a torre relojoeira. Nele havia uma esfera armilar, encimada de uma cruz, com um cata-vento. E, num coruchéu forrado de azulejos, estaria empoleirado um corvo mecânico, de ferro dourado, que “soltava tantas grasnadelas, quantas as horas que dava o relógio, e que se ouviam a grande distância”. Segundo a tradição, esse conjunto foi destruído por um raio.

Eugénio Cavalheiro e Nelson Rebanda não estão muito inclinados para acreditar na existência de tal aparato. “As coberturas de torres em azulejo, mesmo piramidais, são frequentes no século XVIII, pelo que não seria descabido aceitar esta hipótese, podendo a mesma confundir-se com a designação de zimbório. A sua destruição por um raio é também possível, dada a frequência das trovoadas e descargas eléctricas, motivadas pelo relevo e pela enorme concentração metálica (ferro) da serra do Reborêdo”. Quanto ao “corvo mecânico”, dizem que a versão popular “talvez fosse induzida por algum cata-vento com essa forma, dado o seu simbolismo para a vila”, que ostenta dois corvos no seu brasão. No entanto, “não é credível, aqui, a existência de mecanismos que emitissem sons, como se pretende, pois isso não passaria despercebido nos inúmeros pagamentos relativos ao conserto do relógio, referidos por documentação municipal”.

Autómatos públicos, ligados a mecanismos relojoeiros, estão generalizados nos séculos XVII e XVIII dos burgos europeus. Com outro tipo de sensibilidade para este património, as autoridades locais conseguiram mantê-los em bom estado, a funcionar, até hoje. Dado o total desprezo que gerações e gerações de entidades responsáveis eclesiásticas ou civis votaram, em Portugal, ao património relojoeiro de torre, não seria de admirar que o “corvo mecânico”, a ter existido, há muito tivesse desaparecido, sem deixar rasto. Mas, o mais provável é que ele não passe na verdade de lenda.



Quanto ao relógio da Igreja Matriz, dizem-nos Eugénio Cavalheiro e Nelson Rebanda em informação que nos fizeram entretanto chegar, foi colocado em 1931 pela casa “Miguel Marques Henriques / (casa fundada em 1905) / Relojoaria e Ourivesaria. – Av. De Liberdade / Albergaria-a-Velha”, segundo um papel colado na parede da cabine de madeira onde o mecanismo está instalado. Ele continua a trabalhar, fruto de intervenções recentes. Um funcionário da câmara local encarrega-se da sua manutenção diária. E, assim, o relógio mecânico lá vai dando as horas, exemplo cada vez mais raro num país inundado agora por evitáveis exemplares digitais que poluem o ar circundante com cantilenas fanhosas saídas de um qualquer “chip” e propaladas por um qualquer altifalante de feira.


Mesmo sem corvo grasnador, valerá bem a pena uma visita a Moncorvo, à sua Igreja Matriz e ao relógio mecânico que ostenta lá bem em cima.

Para saber mais: História do Tempo em Portugal - Elementos para uma História do Tempo, da Relojoaria e das Mentalidades em Portugal (Diamantouro, 2003)

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