segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

Memória - Gnomónica em Portugal: do Barroco à actualidade*


D. Luiz Caetano de Lima (nascido em Lisboa em 1687) estudou nos teatinos e professou nessa ordem em 1687. Estando entre os 50 nomes fundadores da Academia Real da História, fez parte de embaixadas diplomáticas portuguesas a França e à Holanda, nos movimentos de legitimação do regime saído da Restauração de 1640. Autor de uma “Gramática Francesa, ou arte para aprender o Francês por meio da língua portuguesa” ou de uma “Gramática Italiana, e arte para aprender a língua Italiana por meio da língua portuguesa” escreveu ainda uma belíssima “Gnomónica Universal, e método para toda a casta de relógios Regulares, e Irregulares, Astronómicos, Judaicos, Babilónios, e Itálicos com grande número de figuras”. A obra, datada de 1704, encontra-se ainda manuscrita, nos acervos da Biblioteca Nacional. Desenhados à mão, e a cores, são representados nessa obra algumas dezenas de modelos de relógios de sol e explanados os métodos de os construir.


Os relógios mecânicos que equipavam as torres das igrejas ou dos municípios portugueses de então, a chamada relojoaria grossa ou férrea, eram de fraca qualidade e, com D. João V, começam a chegar novas máquinas, muito mais precisas, que vão substituindo a pouco e pouco as da geração anterior. Até mesmo o relógio da Sé de Lisboa era pouco fiável. Uma carta de Novembro de 1719, dirigida pelo secretário de Estado, Diogo de Mendonça Côrte Real, ao presidente do senado municipal da câmara encarregado da parte ocidental da cidade, reza assim: “S. Magestade, que Deus guarde, é servido que V. Ex.ª ordene que o relógio da Sé de Lisboa oriental se ponha pelo sol, e, quando não haja relógio de sol, se ponha pelo dos padres da Congregação do Oratório”. A relojoaria férrea ainda se acertava então pelo sol. D. João V equipou por essa altura dezenas de mosteiros e conventos com relógios de sol, que conseguiram na generalidade sobreviver até hoje.

É neste ambiente de luxo e ostentação, por um lado, e de devassidão e insegurança social, por outro (o ouro do Brasil tudo permitia), que surge na cidade de Lisboa uma figura misteriosa: Manoel Angelo Villa.Nada se sabe dele, a não ser através de um opúsculo publicado em 1745: “Lista noticiosa dos instrumentos, e artefactos físicos, e matemáticos, que se fabricam, e se vendem nesta cidade de Lisboa, em casa de Manoel Angelo Villa, professor operário dos ditos instrumentos”. Impresso na oficina de António Isidoro da Fonseca, “com todas as licenças necessárias”, o folheto era também lá vendido. Da lista de instrumentos feitos pelo “professor operário” Villa constam “relógios de sol de algibeira de diferentes modos, uns de madeira de buxo, outros de marfim, e de metal, de anel, armilares, e de caixa, etc.” ou um “relógio astronómico de minha invenção, que toca três carrilhões, a saber: cravo, órgão, e campainhas, isto é, antes de dar as horas, o que faz uma figura com um martelo nas mãos, o dito relógio mostrará os crescentes, e minguantes dos dias, de Inverno, e Verão, e os crescentes e minguantes da Lua, a qual sai ao mesmo tempo, que a verdadeira, e juntamente o sol às mesmas horas, que o verdadeiro”.

Na Real Fábrica de Relógios, fundada em 1765 pelo Marquês de Pombal, na zona das Amoreira, ao Rato, em Lisboa, além do fabrico de relojoaria mecânica de vário porte, também se tratava da ciência gnomónica e da sua prática. À sua frente está um francês, Claude Berthet. No primeiro inventário, de Agosto de 1765, referem-se “parafusos para tarraxar relógios de sol”, e mesmo um “relógio de sol”. Desse tempo existe um relógio de sol equatorial ou universal no Museu de Marinha, em Lisboa, assinado “marquant le temps vrai et le temps moyen, fait et inventé par André Berthet, horloger à Lisbonnne,1774” (marcando o tempo verdadeiro e o tempo médio, feito e inventado por André Berthet, relojoeiro em Lisboa, 1774).Dispondo de dois níveis de bolha de ar, cruzados, para que a sua base fique na posição horizontal, e de uma pequena agulha magnética, para o orientar segundo o plano do meridiano do local onde se encontra, o relógio pode ser usado em latitudes entre 30 e 45 graus. A sua particularidade mais importante e rara é fornecer o tempo médio, ou seja, resolve a chamada “equação do tempo” (diferença de entre mais 14 e menos 16,5 minutos por ano no movimento aparente do Sol). Esta e outras particularidades da construção deste relógio tornam-no de excepcional qualidade. Quanto a André Berthet, não se sabe mais nada deste fabricante.

O Observatório Astronómico da Escola Politécnica, em Lisboa

Em 1830, F. Silvestre (possivelmente um pseudónimo), fez publicar em Tours, França, a obraL’Espagne et le Portugal Tels qu’on les voit – Notes et Impressions de Voyage. Nela, descreve assim o panorama relojoeiro de Lisboa em meados do séc. XIX: [...] Lisboa, como em geral todas as cidades da Península, tem falta de relógios públicos. É certo que vemos raramente as pessoas a consultarem os seus relógios, e é mesmo muito provável que aquelas que surpreendemos nessa ocupação estejam apenas de passagem, e tenham importado esse hábito dos seus países de origem. Com efeito, os portugueses, bem como aliás os espanhóis, têm o hábito de observar a posição do sol que, desde o nascer ao ocaso, está sempre lá para permitir deduzir-se muito aproximadamente a hora, com a ajuda de uma simples observação. Devo também referir, para ser imparcial, que se encontram, de tempos a tempos, numa qualquer montra, suspensos algumas dezenas de relógios ingleses ou americanos; mas estou convencido de que os compradores são muito raros e todos estrangeiros. “É verdade que a necessidade de possuir estas máquinas complicadas não se faz sentir em países ensolarados, como se faz com grande urgência na Flandres, na Alemanha e em certas regiões setentrionais onde o tempo nublado, de tempos a tempos, impede que se alcance o que quer que seja, e mesmo os olhos reforçados com óculos de lentes muito grossas não conseguem atingir os ponteiros dos relógios monumentais que cada edifício um pouco respeitável se orgulha de exibir”.

Num texto, de Maio de 1846, assinado por Veríssimo Alves Pereira, na “Revista Universal Lisbonense”, lê-se: "Nem tudo será eivado do frenesim do século, nem tudo será política no nosso reino”, desabafa logo no início Veríssimo Alves Pereira, e com alguma razão – estava-se num ano de fogo, com a Revolta da Maria da Fonte, a queda do Governo de Costa Cabral, o início da Patuleia. É no meio deste “prec”, “deste vórtice imenso em que giramos, onde mais vezes se debatem as paixões que os interesses do país”, que “alguma coisa há-de surgir de verdadeira utilidade”. E anuncia-se, com alegria: “O Porto acaba de fazer uma aquisição desta espécie, e por fortuna minha coube-me a mim o seu desempenho. Ali tem ele uma Meridiana sonante, aí tem ele portanto satisfeita uma das suas grandes necessidades”. E Veríssimo Alves Pereira explica: “A simples Meridiana é uma máquina demasiado compreensível e de fácil obra, mas não assim se este instrumento se encarrega também de transmitir a hora que marca para um ponto longínquo por meio do toque de sinos. A Meridiana que hoje tem o Porto pratica isso. “Acha-se ela colocada no magnífico – e a todos os respeitos mui apropriado edifício da Torre dos Clérigos, e a seguinte, é a descrição mais abreviada do seu maquinismo e feitos. “Passando o sol pela linha Norte-Sul da cidade, um de 8 delgados cordões feitos de 4 fios de retrós preto que se acha na mesma linha, se queima quando ferido pelo foco de uma lente, e imediatamente pelo espaço de quase dois minutos se faz ouvir um repique dado em muitos sinos, e a detonação de um morteiro. Isto se passa na altura de 52 metros, ou, pouco mais ou menos 235 palmos acima da base da Torre, e portanto dá aviso à maior parte da cidade de quando é o seu verdadeiro meio-dia, e convida a todos para que regulem seus relógios talvez duzentas e tantas vezes por ano, que tantos são os dias presumíveis em que a atmosfera do Porto deixa ver àquela hora a face do sol”.

O guardião do meio-dia solar “tripeiro” tinha sido, ele próprio, o autor da Meridiana dos Clérigos. Diz que foi ajudado na tarefa pelos amigos João Vieira Pinto, Francisco Joaquim da Silva Natividade e Luís Ferreira de Sousa e refere ainda um Manuel Bernardes Galinha, “muito hábil artista de Coimbra”, que muito o ajudou, pondo à sua disposição a sua “bem estabelecida oficina”. Mas vamos aos pormenores: “Não obstante estar a Meridiana colocada fora da Torre, e distante da máquina que tange os sinos coisa de 50 palmos, e esta afastada deles uns 102, o que torna um pouco difícil a comunicação entre as diversas partes deste todo, tudo se venceu, e uma vez truncado o cordão que se propôs à acção dos raios solares convergidos pela lente, os sinos tocam, ecoa o morteiro, e a peça que contém os 8 cordões, foge da sua posição para depois de dar tempo à deslocalização do foco, vir oferecer por um outro movimento que faz sobre o seu eixo, um novo cordão que detém a máquina, e que há-de repetir no outro dia esta mesma cena. E porque são 8 os cordões, e 8 também os dias de corda que a máquina tem, só depois de seccionado o último cordão, é que é necessário refazê-la de novos cordões, e de nova corda que é preciso dar-lhe”.

Em 1932, António Ferreira Pinto, num opúsculo dedicado ao Bicentenário da Torre dos Clérigos, refere “en passant” que “durante muitos anos um tiro dado na torre por um grande morteiro anunciava a Meridiana”. E acrescentava: “era um serviço inconveniente, que terminou, há muito, e que provou a solidez do monumento”. Da meridiana, propriamente dita, nem rasto.

Mas passemos à capital. Em carta publicada em 1847 na Revista Universal Lisbonense, Alves Pereira dá conta de que fez uma proposta à Câmara Municipal de Lisboa para que fosse instalado na capital um mecanismo idêntico ao que acabara de instalar nos Clérigos. Através dessa carta, o inventor quer “dar ao público uma ideia do seu mecanismo, e convidar os nossos sábios gnómonos e matemáticos, a darem sobre ele o seu parecer, corroborando ou rectificando” as suas ideias. No mecanismo proposto para Lisboa, entendeu que seria melhor se, em vez de o efeito sonoro à passagem do sol pelo zénite ser o repicar dos sinos da torre onde estivesse instalado, ele agora fizesse incendiar dois foguetes, “servindo o primeiro para prevenir a observação, e o segundo para marcar o rigoroso instante dela”. “Desta forma, acabei de construir uma nova meridiana, de que me parece resultaria grande comodidade ao público de Lisboa, sendo colocada no Terreiro do Paço, e com o que a Marinha tiraria também grande proveito”. O mecanismo era composto de duas caixas, com a “conveniente rodagem” no interior. Uma delas conteria até 14 foguetes, e a outra catorze pistolas “em comunicação com estes, para os incendiar, e que se disparam por meio de uma régua dentada que lhes vai tocar no gatilho”.

“Em relação com a rodagem está uma mola que comprime uma pequena alavanca, que mantém, por meio de uma roda dentada, a meridiana propriamente dita na devida posição oblíqua”, explica. “Esta consta de um eixo de oitenta e quatro centímetros, em cujas extremidades há duas rodas, sendo uma delas a que acabo de falar. De uma a outra destas rodas tiram-se oito cordões de quatro fios de retrós cada um deles, paralelos ao eixo. Na altura de oitenta e quatro centímetros destes cordões está colocada a lente de igual foco. Quando os raios solares, convergidos por esta lente, tocam o ponto do meio-dia, queimam o cordão de retrós que lhe está oferecido à acção. Imediatamente a rodagem se põe em movimento, e ouve-se a detonação do primeiro foguete de duas bombas, para prevenção. Trinta ou quarenta minutos depois estala o segundo de uma só bomba, que marca o meio-dia. As duas caixas fecham-se logo, para ficarem preservando da humidade os foguetes e as pistolas, e a meridiana tendo feito uma oitava parte do seu giro, sobre o seu eixo, virá assim oferecer um novo cordão de retrós à acção solar do meio-dia do dia seguinte”. Tal como a sua irmã do Porto, a máquina “está feita para durar uma semana sem ser necessário remontá-la”.

Havia resistências a este tipo de mecanismo. O próprio Veríssimo Alves Pereira diz: “Alguém, a quem muito respeito por seu talento e estudos, não dá a esta qualidade de meridianas todo o valor que eu penso que elas têm, convenientemente colocadas numa cidade como Lisboa; e julga que aqueles que quiserem verificar o bom regulamento dos seus relógios ou cronómetros, o poderão fazer melhor servindo-se de quaisquer gnómon ou quadrante”. O inventor não identifica esse seu conhecido, mas acrescenta que outras pessoas pensam também o mesmo, pois “uma meridiana assim é pouco rigorosa, porque a intensidade do sol nem sempre é a mesma”. À primeira objecção, Alves Pereira diz que nem todos podem andar com gnómon ou quadrante, não os sabem fazer, e não é muito prático esperar “ao pé do estilete que a sua sombra vá tocar o ponto do meio-dia”. Quanto à segunda objecção, ele concorda que a sua meridiana poderá ter “algum desvio de segundos, se a intensidade do sol aumentar ou diminuir”, mas considera-o despiciendo, quando espalhado ao longo de um ano. “Estas são as questões que eu desejaria ver impugnadas por quem soubesse mais teoria do que eu, ou que achando-as conformes às suas ideias as corroborassem; porque a minha voz é débil, e eu careço de apoiar e fortificar as minhas ideias com as de quem já tenha crédito e nome a tal respeito”, remata a carta publicada na Revista Universal Lisbonense. Parece que não conseguiu convencer a vereação de Lisboa, e alguns anos depois aparecia o Balão do Arsenal, como iremos ver, e que desempenharia a partir de então as funções de marcar o meio-dia “oficial” na capital do reino.

De Veríssimo Alves Pereira, Júlio Castilho, na sua “Lisboa Antiga” diz que esta curiosa personagem “andava sempre com algum projecto, algum invento útil, alguma facilitação industrial, alguma aplicação novíssima da mecânica” na cabeça. E, como todos os inventores, “explicava em termos prolixos, a quem quer que encontrasse, as vantagens de tal ou tal aparelho, os pormenores de tal ou tal engrenagem, sem querer saber se o seu interlocutor se achava no ponto de vista dele, e comungava das mesmas ideias”. Segundo Júlio Castilho, “entre vários devaneios que lhe entretiveram as distintas faculdades intelectuais, figurou muito a meridiana”. Nas palavras sugestivas do autor de“Lisboa Antiga”, Veríssimo Alves Pereira queria “obrigar o sol a dizer em alta voz a Lisboa inteira: Meus senhores, cuidado! Cá estou eu no zenith. Acertem os relógios! Vamos! E depressa!”. Pois, no caso da meridiana de Lisboa, o projecto foi mesmo para a frente, embora com contornos misteriosos. Em sessão no início de 1857 recebia a Câmara da capital um ofício, em que o cidadão Veríssimo Alves Pereira lhe remetia uma memória acerca da meridiana que ele projectava colocar no castelo de S. Jorge, e que havia de anunciar o meio-dia verdadeiro com a detonação de um morteiro, incendiado por uma lente biconvexa (o esquema tinha sido explicado antes pelo inventor, em carta publicada na “Revista Universal Lisbonense”, como referimos acima). O autor oferecia o mencionado aparelho ao município, e pedia que se nomeasse uma comissão para dar o seu parecer. Poucos dias depois, resolvia a câmara consultar, em vez da comissão apontada, um professor da Escola Politécnica, Guilherme José António Dias Pegado. Mas, ou porque ele não aceitou, ou porque não estava na capital, alguns dias mais tarde o executivo camarário contacta Felipe Folque para que este dê um parecer sobre a meridiana.

Garante Castilho que o parecer de Folque foi inteiramente favorável e, em Fevereiro de1857 a câmara manifesta o desejo de comprar a meridiana, que Veríssimo até já tinha colocado no castelo. Pede-se ao Ministério da Guerra a pólvora necessária ao funcionamento do instrumento e que faça as obras necessárias ao assentamento definitivo da meridiana e dos morteiros numa das esplanadas do castelo. “Quanto custou o aparelho, não sei; acho autorizadas pela câmara duas prestações de pagamento a Alves Pereira: uma de 50 mil réis, outra de 67.680 reis. Seria a totalidade? Talvez”, escreve Castilho. “Aqui perco o rasto à meridiana; não sei por que motivo deixou de funcionar, e desapareceu. A “Ilustração Portuguesa”, de 25 de Novembro de 1907, também não dá grandes pistas sobre isso. A dado passo, um artigo de Victor Ribeiro sobre os observatórios astronómicos portugueses, diz: “Mais moderna é a ideia da meridiana, como a do Palais Royal, de Paris. Estabeleceu-a no castelo de S. Jorge em 1857 um cidadão dedicado, Veríssimo Alves Pereira [...]. Agora, temo-la, em Lisboa, no terraço do observatório da Escola Politécnica. Uma lente que converge os raios do sol sobre o ouvido da peça faz disparar o canhão à uma hora da tarde. Há uma linda peçasinha meridiana no terraço do palácio da Pena”.

Quanto ao “tiro da Escola Politécnica”, Mário Costa, no já citado “Duas curiosidades de Lisboa...” diz que não se conhece a data em que ele começou a funcionar mas que, em 1912, quando Portugal deixou de regular-se pelo meridiano de Lisboa e passou a seguir o de Greenwich, o canhão era disparado através de um sistema eléctrico, e só depois de ter a indicação de que era uma da tarde, através de uma linha telefónica ligada ao Observatório da Tapada. O canhão deixou de funcionar em 1914 ou 1915 e não há notícia do seu paradeiro.

Em 1849, surgem as “Efemérides Náuticas” orientadas para o meridiano de Lisboa, de Mateus Valente do Couto Diniz, capitão de Artilharia, ajudante e secretário do Observatório de Marinha, sócio da Academia Real das Ciências de Lisboa.

A obra explica “a ascensão recta do sol para achar com exactidão a hora verdadeira da passagem dos astros pelo meridiano de Lisboa, ou por qualquer outro meridiano de um lugar conhecido” e o conceito de Equação do Tempo. Dá igualmente a fórmula de cálculo para se achar a equação do tempo num determinado dia do ano.

Quanto a relógios de sol em Lisboa, e com tradição, Mário Costa fala-nos de um que havia no Jardim das Albertas, à Rocha do Conde de Óbidos, e que parece não ter deixado também rasto.

Mas acabemos com Castilho: “O que vejo é que logo em sessão da Câmara, de 1 de Outubro de 1860, o vereadorJosé Mendes da Assunção propunha que, para regular todos os relógios da capital, se colocasse no castelo de S. Jorge um balão a anunciar o meio-dia”. E conclui o autor de Lisboa Antiga: “Não encontro seguimento à proposta; mas hoje temos em lugar desse o balão do Arsenal da Marinha”.

O Diário do Governo de 9 de Novembro de 1858 publicava a seguinte nota da Secretaria de Estado dos Negócios Estrangeiros e do Ultramar: “Achando-se actualmente colocado no plano do meridiano do Observatório Astronómico da Marinha o seu instrumento de passagens, anuncia-se a bem do serviço de cronómetros da marinha de guerra e mercante, e dos relógios públicos e particulares desta capital, que da data do presente anúncio em diante se indicará todos os dias no referido Observatório, por meio da rápida queda de um balão, o rigoroso instante em que a pêndula do mesmo Observatório marcar exactamente uma hora média”.

E acrescentava a nota: “Para os observadores não cansarem a sua atenção adverte-se, que um quarto de hora antes da uma hora média subirá o balão a meio mastro, cinco minutos antes da referida hora elevar-se-á até ao tope, e quando no Observatório a pêndula do tempo médio marcar rigorosamente o momento da uma hora média cairá o balão rapidamente”.

E quando o céu estivesse nublado e não fosse possível marcar a passagem do Sol pelo seu zénite em Lisboa? Pois a nota acautela: “Nos dias em que o estado da atmosfera não permitir que se observem as passagens meridianas do Sol com o instrumento de passagens, o Observatório não se responsabiliza então por alguma pequena diferença que a pêndula do tempo médio (aliás muito boa) possa por qualquer causa ter sofrido na sua marcha diurna desde o último dia em que se observou a passagem meridiana do Sol”

Este sinal horário estava assente no terraço do Observatório Real da Marinha, na altura e até à sua extinção em 1874, situado no Arsenal, na zona ribeirinha entre o Terreiro do Paço e o Cais do Sodré.

O primeiro engenho, classificado, por exemplo, pelo vice-almirante Augusto Ramos da Costa de “irrisório balão, manejado por uma corda”, terá sido alvo da troça e do descrédito de alfacinhas e forasteiros, dado que a sua hora nunca batia certo. O objectivo do sinal horário era, antes de mais, servir de parâmetro fiável para os cronómetros de marinha dos barcos que aportavam ou zarpavam do porto de Lisboa, mas o descalabro era tal que muitos almanaques náuticos ingleses e franceses publicaram na altura notas de crítica aos sinais emitidos por Lisboa, que não mereciam a mínima confiança.

Atentas a esta “vergonha nacional”, as autoridades substituem o primeiro balão por um outro, mais sofisticado, a 15 de Agosto de 1885. O novo aparelho foi construído sob a direcção do oficial da Armada e engenheiro hidrógrafo Fredrico Augusto Oom (1830-1890), primeiro director do Real Observatório Astronómico de Lisboa (Tapada da Ajuda).

No seu conjunto, o segundo Balão do Arsenal formava uma curiosa obra de engenharia, erguendo-se “a jusante do dique do Arsenal da Marinha e no cunhal sueste do extremo Oeste avançado deste estabelecimento”, e permitia dar a conhecer a “hora oficial” de Lisboa. Agora, não só os habitantes da capital tinham ali um método mais seguro de, diariamente, acertarem as suas “cebolas”, como os navios podiam com mais fiabilidade acertar os seus cronómetros e “congelar” o tempo de terra quando zarpavam, conseguindo assim um elemento básico e precioso para o achamento em alto mar da longitude onde se encontravam.

O mastro do Balão do Arsenal media sete metros de altura e o balão propriamente dito, pintado de preto, tinha um metro de diâmetro e pesava quase 24 quilos. Cinco minutos antes da hora subia até meio mastro, nos três últimos minutos subia até ao topo e caía automaticamente à uma hora precisa de tempo médio oficial. Tudo isto era possível porque a torre estava ligada por fio eléctrico ao Observatório da Ajuda, de que distava cerca de quatro quilómetros. Por outras palavras, era através da observação do zénite na Ajuda que o balão se movimentava.

Segundo relatos coevos, logo que ocorria a queda do balão, faziam-se ouvir os apitos das embarcações ancoradas no Tejo, “manifestação que correspondia a um grito de festa, com que, por momentos, a cidade se animava”.

O Balão do Arsenal deu o seu derradeiro sinal à uma hora do dia 31 de Dezembro de 1915.

No incêndio que destruiu por completo a Sala do Risco do Arsenal da Marinha, ocorrido a 18 de Abril de 1916, a torre e o mastro do balão escaparam às chamas, mas o primitivo balão que se encontrava como peça de museu naquela sala, desapareceu para sempre.

No final do século XIX, funcionou durante algum tempo no Observatório da Escola Politécnica, em Lisboa, o serviço da “hora oficial”, com o canhão a que fizemos anteriormente referência, a disparar à uma da tarde. Mas a acuidade do sistema era pouca e os lisboetas não se fiavam lá muito nele. “Os que ainda se lembram deste sinal horário, sabem que ele enchia toda a cidade e fazia estar alerta os cidadãos que se jactavam da chamada ‘pontualidade inglesa’. Servia de fulcro às mais alegres anedotas correntes de boca em boca e preenchia os serões familiares, dando os mais divertidos temas aos folhetinistas jocosos da época”, refere Mário Costa nas suas“Duas Curiosidades...”. O canhão e a meridiana passariam depois para o Jardim de São Pedro de Alcântara, onde ficaram ainda algum tempo, sendo depois retirados.

Há apenas quatro números do efémero “Cosmochronometro”, editados por Augusto Justiniano de Araújo no ano de 1897. O fundador da Escola de Relojoaria da Casa Pia de Lisboa, a única do país, ainda hoje, ensina no último número da publicação a maneira de construir uma meridiana ou relógio de sol, demonstrando o interesse perene pela gnomónica, apesar do isocronismo quase perfeito que então a relojoaria mecânica tinha atingido. De notar que a gnomónica fazia parte, até ao início do século XX, dos curricula de vários cursos da Escola Politécnica, em Lisboa, e que ainda em meados do século XX a ciência dos quadrantes solares era parte integrante da disciplina de Geometria Descritiva ministrada na Universidade de Coimbra.

Essa perenidade da gnomónica prova-se em outra das centralidades do tempo público alfacinha de finais do século XIX – estava situado no largo dos Remolares, hoje Cais do Sodré. Diz-nos Júlio de Castilho em “A Ribeira de Lisboa, Descrição Histórica da Margem do Tejo, desde a Madre de Deus até Santos-o-Velho”: “Em 1860 havia no centro da praça uma escadaria circular de poucos degraus, e de2 metros de diâmetro, tendo ao centro, sobre um pedestal, uma meridiana ou relógio de sol. Essa meridiana (como tantas coisas inofensivas e úteis!) tornou-se alvo dos epigramas, mais ou menos agudos, do Lisboeta. Há uns certos sujeitos inúteis, que só sabem rir, rir de quem trabalha, epigramar a quem serve. A meridiana era proveitosa; fazia o seu serviço, e cumpria-o bem; andava às ordens do sol, e obedecia-lhe pontualíssima, em benefício dos próprios ociosos que a desprezavam. Pois era moda dizer mal dela”.

E Júlio de Castilho, sem dar pormenores sobre quando a meridiana terá sido construída ou sobre quem a terá feito, conta várias histórias do quotidiano alfacinha que girava à volta da Meridiana dos Remolares. Uma delas diz respeito a “um pobre saloio, para quem um instrumento assim se figurava novidade inaudita, ouvindo dizer que era relógio se lhe aproximara e, desconfiado de que o pretendiam enganar, aplicara o ouvido, e tornara a aplicá-lo, concluindo (depois de maduro exame) que seria talvez relógio, mas estava parado”.

“Outro beócio chegando ali às Ave-Marias, quando já não havia sol, esperou pacientemente que se acendessem os candeeiros de gás da iluminação municipal, e foi depois consultar a meridiana... que lhe disse não sei bem o quê”, acrescente o conhecido olissipógrafo.

“A meridiana foi enfim substituída (e com vantagem) pelo monumento do Duque da Terceira, cuja primeira pedra se assentou em 24 de Julho de1875”, conclui Castilho.

No Arquivo Fotográfico da Câmara Municipal de Lisboa há uma imagem da Meridiana dos Remolares, numa ilustração ligeiramente diferente da que é incluída em “A Ribeira de Lisboa”. O mesmo arquivo tem depois imagens da praça a sofrer as terraplanagens para receber a estátua e para o assentamento de carris do “americano”, o antecessor do eléctrico, que tanto basbaque iria provocar na capital.

Pelas ilustrações se pode deduzir que o relógio de sol dos Remolares era constituído por uma coluna de pedra, no cimo da qual se colocara uma escala e um gnómon, cuja sombra indicava no mostrador a hora solar. Para onde terá ido, depois de destronada pela estátua equestre? Ninguém sabe. Para entulho, possivelmente. Quantos relógios de sol, espalhados por sítios públicos e privados de Lisboa ou de qualquer outro ponto do país não foram entretanto sendo destruídos pela incúria e ignorância dos gentios? Já alguém reparou no abandono a que foi votado o relógio de sol que está nos jardins de Belém (ali colocado em meados do século XX) e que tem como gnómon uma âncora? É que o mostrador, ajardinado, desapareceu há muito... e os turistas ficarão a coçar a cabeça a pensar para que serve tal âncora ali pespegada, no meio do nada!

*Segunda e última parte do texto produzido para o site do Instituto Camões, sob o tema Gnomónica Lusitana

Para saber mais: Relógios de Sol (CTT, 2007) ou História do Tempo em Portugal - Elementos para uma História do Tempo, da Relojoaria e das Mentalidades em Portugal (Diamantouro, 2003)

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