Era dia 23 de Novembro de 1879. Nessa manhã, o Comandante português Sérvulo Álvares da Silva, a bordo do seu navio mercante, o brigue “Sérvulo”, navegava de Lisboa para Maceió, no Brasil, encontrando-se a cerca de 400 milhas náuticas a nordeste de Cabo Verde.
Também nessa manhã e algures nessa zona, outro navio lutava com sérias dificuldades. Tratava-se da “Janet”, um navio da ordem das 150 toneladas, construído em Portland, Oregon, nos Estados Unidos que, sob o comando do capitão Peter Gartland, se encontrava no Atlântico na caça às baleias. Saíra de New Bedford, Massachusetts, tendo aportado na ilha de S. Miguel, Açores, de onde partira a 29 de Outubro de 1879 em direcção à zona das Canárias. A 6 de Novembro foi sujeito a uma violenta tempestade, que se manteve durante o dia seguinte, a qual lhe quebrou mastros, destruiu velas e arrebatou dois botes salva-vidas, causando graves danos estruturais com consequente inundação do navio. Durante as 36 horas seguintes a tripulação bombeou ininterruptamente. Tendo conseguido manter o navio a flutuar e com o pano que restava, tentaram dirigir-se para as Canárias, todavia, os danos eram tão severos que, agravados agora por ventos fortíssimos na posição latitude 22.30 N e longitude 18.40 W, o capitão Peter Gartland, sem esperança de atingir qualquer porto e face ao eminente risco de afundamento, convocou um conselho de oficiais no qual foi decidido abandonar o navio.
O capitão Gartland e os seus 26 tripulantes estavam prontos para descer para os botes quando avistaram o brigue “Sérvulo” do Comandante Álvares da Silva. Eram 14 horas. Pouco depois fez-se o contacto pessoal, tendo o capitão americano solicitado ao comandante português que os recolhesse. Álvares da Silva concordou e, tendo acabado de recolher a bordo do “Sérvulo” os 27 tripulantes americanos, todos dali assistiram ao quase imediato afundamento da “Janet”.
O brigue português rumou então a Cabo Verde, onde aportou a S. Vicente na noite de 2 de Dezembro de 1879, para entregar os 27 americanos ao cônsul americano em S. Vicente, Sr. John Randall, Jr. Naturalmente, o cônsul inquiriu o Comandante Álvares da Silva sobre o pagamento de indemnização pelo enorme transtorno, todavia, o Comandante respondeu-lhe que era suficiente satisfação para ele ter podido (ainda que com grande risco) praticar esse acto humanitário. E continuou a sua viagem.
Algum tempo depois, foi convidado para uma cerimónia no Ministério dos Negócios Estrangeiros, onde lhe seria entregue um presente oferecido pelo Presidente dos Estados Unidos. Tendo aceite o convite, o presente foi-lhe formalmente entregue: era um relógio de prata com corrente, na época com valor estimado de três libras esterlinas! Ao constatar que o seu valoroso acto fora tão superficialmente avaliado, manifestou publicamente a sua indignação, perguntando ali mesmo se aquele era de facto o relógio oferecido pelo Presidente norte-americano (ao tempo o republicano de Ohio, Rutherford Birchard Hayes, (1877-1881), o que causou enorme embaraço. O Cônsul americano propôs então, em plena cerimónia, pagar a Álvares da Silva cem dólares, se ele aceitasse não falar mais no assunto, oferta que ele recusou com toda a indignação, acrescentando que o problema não era de dinheiro mas sim de dignidade e que esse relógio de prata lhe estaria a ser dado em substituição do valioso presente que certamente o Presidente lhe enviara e que alguém substituíra pelo simples relógio de prata. Depois escreveu directamente ao Presidente dos Estados Unidos, denunciando o sucedido e sugerindo que o relógio fosse oferecido a qualquer asilo norte-americano de marinheiros deficientes.
A imprensa norte-americana fez eco do incidente, causando grande embaraço na Casa Branca, pelo que o Presidente (o republicano de Vermont, Chester Alan Arthur, (1881-1885) ordenou então que lhe fosse oferecido um relógio de ouro de boa qualidade e que lhe fossem pagas as despesas por ele incorridas em todo o processo do salvamento dos tripulantes da “Janet”. De facto, a Ordem nº 83, relativa às “Ordens para Prémios por Salvamento de Vidas”, existente no Registo Central do Departamento de Estado norte-americano, manda o seguinte: “Mr. Brown, please have a gold watch, of good grade, purchased and engraved as follows:
Presented by the President of the United States to Capt. Sérvulo Alvarez da Silva, of the portuguese brig “Sérvulo” for humanity in rescueing the crew of the wrecked american bark “Janet” at sea, Nov. 23, 1879”.
O relógio de ouro, de muito boa qualidade, foi efectivamente comprado na ourivesaria Galt & Bro., Inc, ainda hoje existente em Washington, D.C., para quem fora fabricado entre 1854 e 1857 pela American Waltham Watch Company, baseada em Waltham, Massachusetts, conforme documento aqui incluído, e foi finalmente entregue ao valoroso comandante português em 1882.
Fotocópias de 17 folhas manuscritas gentilmente cedidas pelo Naval Historical Center de Washington, D.C., documentam esta história, onde se pode ler os relatórios do capitão Peter Gartland e do cônsul americano em Cabo Verde, correspondência entre o Ministério dos Negócios Estrangeiros português e o Departamento de Estado norte-americano, bem como cartas do Comandante Álvares da Silva (não Alvarez da Silva, como erradamente foi gravado), recheadas de saborosos pormenores.
É o relógio cujas fotos aqui se incluem, em excelente estado de conservação e com o estojo original, que contém aquela inscrição. Um relógio com uma história de final feliz, da qual este ano se celebra o 130º aniversário.
*Contribuição de Fernando Paula Vicente, Brigadeiro da Força Aérea Portuguesa, na Reserva (originalmente publicado no Anuário dos Relógios e Canetas de 2004, aquando do 125º aniversário do incidente)
Carta de 7 Janeiro 1882, endereçada pelo Comandante Sérvulo Álvares da Silva ao Presidente dos Estados Unidos
Caro Senhor
O abaixo-assinado, Sérvulo Álvares da Silva, comandante e proprietário do navio “Sérvulo”, durante uma viagem a Maceió, teve a sorte de poder salvar as vidas de 27 pessoas, oficiais e tripulação do navio “Janet”, o qual se viria a afundar poucos momentos após o salvamento. Manteve os náufragos a bordo durante dez dias e, tendo-se desviado da sua rota em detrimento dos seus interesses, aportou à ilha de São Vicente (S. Vicente) onde os entregou ao Cônsul dos E. U. da América a quem afirmou não reclamar qualquer indemnização, por encontrar satisfação suficiente no facto de ter podido (ainda que com grande risco) praticar aquele acto de humanidade.
Depois do regresso a esta cidade, foi solicitado a comparecer no Departamento Central a fim de receber um presente com o qual o honrava o Presidente dos Estados Unidos pela sua heróica e humana conduta; tendo ali comparecido, o presente foi-lhe oficialmente entregue. Era um relógio de prata com a respectiva corrente, com um valor de talvez três libras!
O abaixo-assinado sentiu o sangue subir-lhe à cabeça quando viu que o acto que tinha praticado era tomado com tamanho desprezo e ali mesmo se dirigiu ao Consul Americano com o fim de inquirir se aquele era mesmo o presente que lhe tinha sido enviado pelo Presidente dos Estados Unidos, dado que pretendia colocá-lo em exibição pública. O embaraço causado pela sua pergunta não passou despercebido, tendo-lhe de imediato sido oferecidos 100 dólares com a condição de ele nada mais dizer sobre o assunto, oferta que ele indignadamente recusou.
O abaixo-assinado suspeitou logo que o presente que tinha realmente sido enviado pelo Presidente tinha sido substituído por alguém por aquele relógio de prata e, sentindo-se profundamente indignado com tal procedimento, colocou o relógio em exibição pública, simultânea e conjuntamente com uma nota em que declarava desejar pedir licença para devolvê-lo. E assim fez, a fim de tentar descobrir quem fora a pessoa que o tinha defraudado do presente que por direito lhe pertencia.
Não tendo, todavia, conseguido descobrir nada e acreditando a maior parte das pessoas que a referida substituição fora efectivamente feita, considerando que a melhor maneira de descobrir o desonesto agente da troca era informar o próprio Presidente do que fora feito em seu nome, o abaixo-assinado dirigiu uma respeitosa comunicação àquela alta personalidade, lamentando a desonestidade com que as suas ordens tinham sido cumpridas, e sugerindo que o presente fosse oferecido a qualquer asilo americano de marinheiros deficientes; e também pedindo permissão para devolver o relógio.
Para sua surpresa, o abaixo-assinado foi subsequentemente convidado por Sua Excelência o Sr. Anselmo José Braamcamp, Ministro Secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros, a comparecer no Ministério da sua tutela; assim fez e aí tomou conhecimento, para sua ainda maior surpresa, que os jornais americanos tinham publicado a história do incidente, e que o Presidente dos E.U. da América lamentava imenso o sucedido e tinha informado o nosso Representante em Washington que tinha dado ordens para que ao abaixo-assinado fosse oferecido um relógio de ouro e lhe fossem também reembolsadas todas as despesas por ele incorridas; tomou ainda conhecimento de que o nosso Representante tinha sugerido que se acordasse com o abaixo-assinado um encontro pessoal, sugestão ao abrigo da qual ele fora novamente chamado ao Ministério dos Negócios Estrangeiros; foi também informado que um dos objectivos do seu pedido de comparência no Ministério era induzí-lo a publicar nos jornais qualquer coisa destinada a aliviar os sentimentos feridos do Presidente.
O abaixo-assinado afirmou ao digníssimo antecessor de Sua Excelência que já tinha devolvido o relógio e que, para ele, o problema não era de interesses pecuniários, era sim um problema de dignidade, e que não havia razão para que o Presidente se devesse sentir ferido nos seus sentimentos, uma vez que era evidente que as suas ordens não tinham sido cumpridas e que o Presidente desejava reparar o erro. Segundo parece, aquele digníssimo antecessor terá informado o nosso Representante em Washington das circunstâncias do caso, dando-lhe instruções para usar dos meios adequados para que justiça pudesse ser feita ao abaixo-assinado. Parece, no entanto, que o nosso Representante pensou que não valia a pena. A razão pela qual o abaixo-assinado sentiu profundamente toda esta questão é que ele é marinheiro. A manifestação de tal sentimento não pode de forma alguma ser considerada ofensiva para o Presidente dos Estados Unidos, especialmente desde que aquele magistrado declara que as suas intenções não foram cumpridas. Não cabem culpas ao queixoso e nenhumas à pessoa que não deu nenhum azo à queixa, cabem apenas ao agente desonesto que, promovendo o seu enriquecimento pessoal, não só defraudou o abaixo-assinado em relação ao que lhe era devido, mas ainda juntou insulto à injúria.
Tendo em conta os factos, o abaixo-assinado respeitosamente solicita a Vossa Excelência que se digne informar o nosso Representante em Washington sobre a atitude que deve tomar neste caso, não permitindo que a questão seja colocada em nenhum outro plano que não seja aquele em que deve ser tratada, por forma a que ele, usando os seus bem conhecidos tacto e habilidade, possa obter para o abaixo-assinado a justiça a que considera ter direito.
Muito respeitosamente,
Sérvulo Álvares da Silva
Caro Senhor
O abaixo-assinado, Sérvulo Álvares da Silva, comandante e proprietário do navio “Sérvulo”, durante uma viagem a Maceió, teve a sorte de poder salvar as vidas de 27 pessoas, oficiais e tripulação do navio “Janet”, o qual se viria a afundar poucos momentos após o salvamento. Manteve os náufragos a bordo durante dez dias e, tendo-se desviado da sua rota em detrimento dos seus interesses, aportou à ilha de São Vicente (S. Vicente) onde os entregou ao Cônsul dos E. U. da América a quem afirmou não reclamar qualquer indemnização, por encontrar satisfação suficiente no facto de ter podido (ainda que com grande risco) praticar aquele acto de humanidade.
Depois do regresso a esta cidade, foi solicitado a comparecer no Departamento Central a fim de receber um presente com o qual o honrava o Presidente dos Estados Unidos pela sua heróica e humana conduta; tendo ali comparecido, o presente foi-lhe oficialmente entregue. Era um relógio de prata com a respectiva corrente, com um valor de talvez três libras!
O abaixo-assinado sentiu o sangue subir-lhe à cabeça quando viu que o acto que tinha praticado era tomado com tamanho desprezo e ali mesmo se dirigiu ao Consul Americano com o fim de inquirir se aquele era mesmo o presente que lhe tinha sido enviado pelo Presidente dos Estados Unidos, dado que pretendia colocá-lo em exibição pública. O embaraço causado pela sua pergunta não passou despercebido, tendo-lhe de imediato sido oferecidos 100 dólares com a condição de ele nada mais dizer sobre o assunto, oferta que ele indignadamente recusou.
O abaixo-assinado suspeitou logo que o presente que tinha realmente sido enviado pelo Presidente tinha sido substituído por alguém por aquele relógio de prata e, sentindo-se profundamente indignado com tal procedimento, colocou o relógio em exibição pública, simultânea e conjuntamente com uma nota em que declarava desejar pedir licença para devolvê-lo. E assim fez, a fim de tentar descobrir quem fora a pessoa que o tinha defraudado do presente que por direito lhe pertencia.
Não tendo, todavia, conseguido descobrir nada e acreditando a maior parte das pessoas que a referida substituição fora efectivamente feita, considerando que a melhor maneira de descobrir o desonesto agente da troca era informar o próprio Presidente do que fora feito em seu nome, o abaixo-assinado dirigiu uma respeitosa comunicação àquela alta personalidade, lamentando a desonestidade com que as suas ordens tinham sido cumpridas, e sugerindo que o presente fosse oferecido a qualquer asilo americano de marinheiros deficientes; e também pedindo permissão para devolver o relógio.
Para sua surpresa, o abaixo-assinado foi subsequentemente convidado por Sua Excelência o Sr. Anselmo José Braamcamp, Ministro Secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros, a comparecer no Ministério da sua tutela; assim fez e aí tomou conhecimento, para sua ainda maior surpresa, que os jornais americanos tinham publicado a história do incidente, e que o Presidente dos E.U. da América lamentava imenso o sucedido e tinha informado o nosso Representante em Washington que tinha dado ordens para que ao abaixo-assinado fosse oferecido um relógio de ouro e lhe fossem também reembolsadas todas as despesas por ele incorridas; tomou ainda conhecimento de que o nosso Representante tinha sugerido que se acordasse com o abaixo-assinado um encontro pessoal, sugestão ao abrigo da qual ele fora novamente chamado ao Ministério dos Negócios Estrangeiros; foi também informado que um dos objectivos do seu pedido de comparência no Ministério era induzí-lo a publicar nos jornais qualquer coisa destinada a aliviar os sentimentos feridos do Presidente.
O abaixo-assinado afirmou ao digníssimo antecessor de Sua Excelência que já tinha devolvido o relógio e que, para ele, o problema não era de interesses pecuniários, era sim um problema de dignidade, e que não havia razão para que o Presidente se devesse sentir ferido nos seus sentimentos, uma vez que era evidente que as suas ordens não tinham sido cumpridas e que o Presidente desejava reparar o erro. Segundo parece, aquele digníssimo antecessor terá informado o nosso Representante em Washington das circunstâncias do caso, dando-lhe instruções para usar dos meios adequados para que justiça pudesse ser feita ao abaixo-assinado. Parece, no entanto, que o nosso Representante pensou que não valia a pena. A razão pela qual o abaixo-assinado sentiu profundamente toda esta questão é que ele é marinheiro. A manifestação de tal sentimento não pode de forma alguma ser considerada ofensiva para o Presidente dos Estados Unidos, especialmente desde que aquele magistrado declara que as suas intenções não foram cumpridas. Não cabem culpas ao queixoso e nenhumas à pessoa que não deu nenhum azo à queixa, cabem apenas ao agente desonesto que, promovendo o seu enriquecimento pessoal, não só defraudou o abaixo-assinado em relação ao que lhe era devido, mas ainda juntou insulto à injúria.
Tendo em conta os factos, o abaixo-assinado respeitosamente solicita a Vossa Excelência que se digne informar o nosso Representante em Washington sobre a atitude que deve tomar neste caso, não permitindo que a questão seja colocada em nenhum outro plano que não seja aquele em que deve ser tratada, por forma a que ele, usando os seus bem conhecidos tacto e habilidade, possa obter para o abaixo-assinado a justiça a que considera ter direito.
Muito respeitosamente,
Sérvulo Álvares da Silva
Resposta do Departamento de Estado, em 18 de Maio de 1882, dirigida ao Encarregado de Negócios de Portugal, Visconde das Nogueiras
Relativamente à sua recente entrevista sobre o assunto da humanitária e generosa conduta do Comandante Sérvulo Álvares da Silva no salvamento do comandante e dos 26 tripulantes do navio pesqueiro “Janet”, no dia 23 de Novembro de 1879, tenho a honra de o informar que, após ter reexaminado os factos e as circunstâncias a ele relativos, concluo que, na altura em que um relógio de prata foi enviado para ser oferecido ao Comandante da Silva, o Departamento de Estado era detentor de informação apenas parcial do desastre e do carácter desinteressado do socorro prestado à tripulação do “Janet” pelo Comandante da Silva, capitão e proprietário do brigue português “Sérvulo”. Após recepção da totalidade da informação, o Departamento de Estado está muito favoravelmente impressionado pelo generoso acto humanitário do senhor da Silva e, ao reconhecê-lo, eu tenho a honra de solicitar-lhe que transmita àquele senhor os agradecimentos deste Governo, ao mesmo tempo que tenho o prazer de anunciar que o Presidente dos Estados Unidos ordenou que, em comemoração desta conduta heróica e humana, seja oferecido ao Comandante Sérvulo Álvares da Silva, capitão e proprietário do brigue “Sérvulo”, um relógio de ouro com uma inscrição adequada. Logo que ela tenha sido gravada, enviar-lhe-ei esse testemunho de gratidão para que seja oferecido ao Comandante da Silva.
A American Waltham Watch Company
Relativamente à sua recente entrevista sobre o assunto da humanitária e generosa conduta do Comandante Sérvulo Álvares da Silva no salvamento do comandante e dos 26 tripulantes do navio pesqueiro “Janet”, no dia 23 de Novembro de 1879, tenho a honra de o informar que, após ter reexaminado os factos e as circunstâncias a ele relativos, concluo que, na altura em que um relógio de prata foi enviado para ser oferecido ao Comandante da Silva, o Departamento de Estado era detentor de informação apenas parcial do desastre e do carácter desinteressado do socorro prestado à tripulação do “Janet” pelo Comandante da Silva, capitão e proprietário do brigue português “Sérvulo”. Após recepção da totalidade da informação, o Departamento de Estado está muito favoravelmente impressionado pelo generoso acto humanitário do senhor da Silva e, ao reconhecê-lo, eu tenho a honra de solicitar-lhe que transmita àquele senhor os agradecimentos deste Governo, ao mesmo tempo que tenho o prazer de anunciar que o Presidente dos Estados Unidos ordenou que, em comemoração desta conduta heróica e humana, seja oferecido ao Comandante Sérvulo Álvares da Silva, capitão e proprietário do brigue “Sérvulo”, um relógio de ouro com uma inscrição adequada. Logo que ela tenha sido gravada, enviar-lhe-ei esse testemunho de gratidão para que seja oferecido ao Comandante da Silva.
RELATÓRIO DO COMANDANTE DO BARCO AFUNDADO “JANET”
Agência Consular dos Estados Unidos da América em São Vicente, Ilhas de Cabo Verde, aos 3 de Dezembro de 1879.
“Neste dia 3 de Dezembro de 1879, compareceram pessoalmente perante mim, John Randall Jr., Agente Consular dos Estados Unidos da América em São Vicente, Cabo Verde, Peter Gartland, comandante do navio baleeiro americano “Janet”, de New Bedford, de 154 toneladas ou valor aproximado, e declarou que em 29 de Outubro passado partiu com o referido navio da ilha de São Miguel, nos Açores, num cruzeiro de caça à baleia e que tudo correu bem até 6 de Novembro, quando foi sujeito a temporal a sudeste. No dia seguinte, na latitude 30-30 norte e longitude 24-40 oeste, com o vento soprando muito forte por volta das dez horas da manhã, um mar muito revolto atirou o navio…., partiu o gurupés da proa ……………partiu um mastro que caiu para o lado, arrastando consigo o mastro principal, causando um rasgão de quatro metros e meio no convés, arrancou a vela principal de bombordo…quebrou a vela principal de estibordo em quatro lugares, arrancou e levou consigo todas as amuradas de ambos os lados do navio, perdendo-se dois salva-vidas… Durante 36 horas, fez-se a bombagem contínua para retirar a água que inundara o navio. Dois dias mais tarde, o tempo melhorou bastante o que alimentou a intenção de tentar alcançar uma das Ilhas Canárias. O vento de frente desaconselhava tentar as Ilhas de Cabo Verde…. Na latitude 22-30 norte e longitude 18-40 oeste, com ventos ciclónicos de sudoeste e o navio completamente à deriva em direcção à costa, convoquei um conselho de oficiais onde foi decidido abandonar o navio, por não haver qualquer esperança de, no estado em que se encontrava, poder atingir qualquer porto. No dia 23 de Novembro, pelas 14:00 horas, avistei o brigue português “Sérvulo”, de Lisboa. Fui a bordo e pedi ao comandante que nos retirasse do navio, pedido que foi aceite, tendo-nos trazido para a ilha de São Vicente, Cabo Verde, onde chegámos na noite de 2 de Dezembro ………..”
Assinado: Peter Gartland, Comandante
Um lobo-do-mar inventor, orgulhoso e nacionalista
Quem foi o Comandante Sérvulo Álvares da Silva? O Arquivo Central de Marinha, em Lisboa, é omisso quanto a este nome, bem como a um qualquer registo do brigue “Sérvulo”. Mas parece que este homem do mar era natural do Pico, Açores. Pelo menos, teve outras embarcações mercantes ali construídas, com certificado de navegabilidade no Bureau Veritas dessa ilha.
Dos documentos que deixou, realce para um certificado de patente, emitido em 10 de Fevereiro de 1875, em nome da Rainha Vitória, de Inglaterra. Essa invenção que Sérvulo Álvares da Silva teve a preocupação de registar em Londres, consistia num “aparelho e sistema de boca, carangueija, e velas latinas, para rapidamente serem convertidas em triangulares”.
“Durante o período de 23 anos em que tenho exercido a profissão de marinheiro, navegando já como piloto, já como capitão de navio da marinha mercante, tive por muitas vezes ocasião de conhecer praticamente os grandes inconvenientes do processo até hoje adoptado para meter nos rizes as velas latinas”, diz o português na sua “explicação e descrição” do invento. Sérvulo Álvares da Silva andava, pois, no mar desde 1852.
“Para evitar tão grandes inconvenientes inventaram um novo modo de rizar as mencionadas velas, enrolando o pano na retranca por um processo facílimo. Dentro em pouco, porém, reconheceu-se que este sistema tinha a grande desvantagem de cortar muito, e estragar o pano, e portanto deixou se ser adoptado”, prossegue. “Mais tarde, os americanos começaram a usar um triângulo com gase-tópe, que vinha cassar ao lais da retranca, mas este sistema não chegou também a ser adoptado, pela muita dificuldade que apresentava para se poder ferrar a dita gase-tópe”.
Elencando outros métodos, o navegador português diz ter feito “várias experiências, empregando trabalho e estudo”, conseguindo finalmente inventar “um sistema para com a maior rapidez, e debaixo de qualquer tempo, converter, com grandes vantagens, as velas latinas em triangulares”.
“Consiste este meu invento em um aparelho no mastro a que se prende a carangueija […] a fim de a fazer inclinar, de modo a que fique prolongada com o mastro”, diz.
Velho lobo-do-mar, com décadas de experiência, inventor, Sérvulo Álvares da Silva não hesitou em enfrentar, directamente, o Departamento de Estado norte-americano.
Como ele refere na carta que endereçou ao Presidente dos Estados Unidos, o relógio que chegou a Lisboa e o Comandante rejeitou, por indigno, esteve patente na Baixa lisboeta, para gáudio dos passantes. “A cebola de prata”, como lhe chamavam, esteve na montra do nº 213 da Rua do Ouro, com um papel ao lado, contando toda a história.
O ano de 1878, quando ocorre o naufrágio do “Janet” e o salvamento heróico da sua tripulação, é agitado para Portugal – o sentimento anti-monárquico cresce nas cidades, o Partido Republicano apresenta-se pela primeira vez às eleições, elegendo o seu primeiro deputado, pelo Porto (Rodrigues de Freitas). Num censo populacional ficava a saber-se que os portugueses no continente tinham ultrapassado já os 4 milhões. Em Lisboa, ocorriam as primeiras experiências de iluminação eléctrica. Eça de Queiroz publicava O Primo Basílio.
A história do relógio oferecido ao Comandante Sérvulo Álvares da Silva só termina em 1882, três anos depois do salvamento e com a entrega do relógio de ouro Waltham, gravado, em cerimónia em Lisboa. Em 1880, a oposição republicana aproveitara o tricentenário da morte de Camões para realizar manifestações maciças contra o regime monárquico. O sentimento patriótico culminaria dez anos mais tarde com a reacção ao Ultimato inglês. É nesse ambiente de fervor nacionalista que se pode inserir toda esta história da recusa de um relógio de prata, a tal “cebola” valendo umas três libras, oferecida a um orgulhoso e inventivo Comandante de Marinha Mercante português por uma potência estrangeira.
Agência Consular dos Estados Unidos da América em São Vicente, Ilhas de Cabo Verde, aos 3 de Dezembro de 1879.
“Neste dia 3 de Dezembro de 1879, compareceram pessoalmente perante mim, John Randall Jr., Agente Consular dos Estados Unidos da América em São Vicente, Cabo Verde, Peter Gartland, comandante do navio baleeiro americano “Janet”, de New Bedford, de 154 toneladas ou valor aproximado, e declarou que em 29 de Outubro passado partiu com o referido navio da ilha de São Miguel, nos Açores, num cruzeiro de caça à baleia e que tudo correu bem até 6 de Novembro, quando foi sujeito a temporal a sudeste. No dia seguinte, na latitude 30-30 norte e longitude 24-40 oeste, com o vento soprando muito forte por volta das dez horas da manhã, um mar muito revolto atirou o navio…., partiu o gurupés da proa ……………partiu um mastro que caiu para o lado, arrastando consigo o mastro principal, causando um rasgão de quatro metros e meio no convés, arrancou a vela principal de bombordo…quebrou a vela principal de estibordo em quatro lugares, arrancou e levou consigo todas as amuradas de ambos os lados do navio, perdendo-se dois salva-vidas… Durante 36 horas, fez-se a bombagem contínua para retirar a água que inundara o navio. Dois dias mais tarde, o tempo melhorou bastante o que alimentou a intenção de tentar alcançar uma das Ilhas Canárias. O vento de frente desaconselhava tentar as Ilhas de Cabo Verde…. Na latitude 22-30 norte e longitude 18-40 oeste, com ventos ciclónicos de sudoeste e o navio completamente à deriva em direcção à costa, convoquei um conselho de oficiais onde foi decidido abandonar o navio, por não haver qualquer esperança de, no estado em que se encontrava, poder atingir qualquer porto. No dia 23 de Novembro, pelas 14:00 horas, avistei o brigue português “Sérvulo”, de Lisboa. Fui a bordo e pedi ao comandante que nos retirasse do navio, pedido que foi aceite, tendo-nos trazido para a ilha de São Vicente, Cabo Verde, onde chegámos na noite de 2 de Dezembro ………..”
Assinado: Peter Gartland, Comandante
Um lobo-do-mar inventor, orgulhoso e nacionalista
Quem foi o Comandante Sérvulo Álvares da Silva? O Arquivo Central de Marinha, em Lisboa, é omisso quanto a este nome, bem como a um qualquer registo do brigue “Sérvulo”. Mas parece que este homem do mar era natural do Pico, Açores. Pelo menos, teve outras embarcações mercantes ali construídas, com certificado de navegabilidade no Bureau Veritas dessa ilha.
Dos documentos que deixou, realce para um certificado de patente, emitido em 10 de Fevereiro de 1875, em nome da Rainha Vitória, de Inglaterra. Essa invenção que Sérvulo Álvares da Silva teve a preocupação de registar em Londres, consistia num “aparelho e sistema de boca, carangueija, e velas latinas, para rapidamente serem convertidas em triangulares”.
“Durante o período de 23 anos em que tenho exercido a profissão de marinheiro, navegando já como piloto, já como capitão de navio da marinha mercante, tive por muitas vezes ocasião de conhecer praticamente os grandes inconvenientes do processo até hoje adoptado para meter nos rizes as velas latinas”, diz o português na sua “explicação e descrição” do invento. Sérvulo Álvares da Silva andava, pois, no mar desde 1852.
“Para evitar tão grandes inconvenientes inventaram um novo modo de rizar as mencionadas velas, enrolando o pano na retranca por um processo facílimo. Dentro em pouco, porém, reconheceu-se que este sistema tinha a grande desvantagem de cortar muito, e estragar o pano, e portanto deixou se ser adoptado”, prossegue. “Mais tarde, os americanos começaram a usar um triângulo com gase-tópe, que vinha cassar ao lais da retranca, mas este sistema não chegou também a ser adoptado, pela muita dificuldade que apresentava para se poder ferrar a dita gase-tópe”.
Elencando outros métodos, o navegador português diz ter feito “várias experiências, empregando trabalho e estudo”, conseguindo finalmente inventar “um sistema para com a maior rapidez, e debaixo de qualquer tempo, converter, com grandes vantagens, as velas latinas em triangulares”.
“Consiste este meu invento em um aparelho no mastro a que se prende a carangueija […] a fim de a fazer inclinar, de modo a que fique prolongada com o mastro”, diz.
Velho lobo-do-mar, com décadas de experiência, inventor, Sérvulo Álvares da Silva não hesitou em enfrentar, directamente, o Departamento de Estado norte-americano.
Como ele refere na carta que endereçou ao Presidente dos Estados Unidos, o relógio que chegou a Lisboa e o Comandante rejeitou, por indigno, esteve patente na Baixa lisboeta, para gáudio dos passantes. “A cebola de prata”, como lhe chamavam, esteve na montra do nº 213 da Rua do Ouro, com um papel ao lado, contando toda a história.
O ano de 1878, quando ocorre o naufrágio do “Janet” e o salvamento heróico da sua tripulação, é agitado para Portugal – o sentimento anti-monárquico cresce nas cidades, o Partido Republicano apresenta-se pela primeira vez às eleições, elegendo o seu primeiro deputado, pelo Porto (Rodrigues de Freitas). Num censo populacional ficava a saber-se que os portugueses no continente tinham ultrapassado já os 4 milhões. Em Lisboa, ocorriam as primeiras experiências de iluminação eléctrica. Eça de Queiroz publicava O Primo Basílio.
A história do relógio oferecido ao Comandante Sérvulo Álvares da Silva só termina em 1882, três anos depois do salvamento e com a entrega do relógio de ouro Waltham, gravado, em cerimónia em Lisboa. Em 1880, a oposição republicana aproveitara o tricentenário da morte de Camões para realizar manifestações maciças contra o regime monárquico. O sentimento patriótico culminaria dez anos mais tarde com a reacção ao Ultimato inglês. É nesse ambiente de fervor nacionalista que se pode inserir toda esta história da recusa de um relógio de prata, a tal “cebola” valendo umas três libras, oferecida a um orgulhoso e inventivo Comandante de Marinha Mercante português por uma potência estrangeira.
A American Waltham Watch Company
Em 1850, Roxbury Massachusetts, David Davis, Edward Howard e Aaron Lufkin Dennison fundaram em conjunto a companhia que mais tarde se tornaria na American Waltham Watch Company. O plano, então revolucionário, era fabricar os componentes do movimento de um relógio de maneira tão precisa que eles pudessem ser totalmente intermutáveis. O problema estava nas ferramentas, e foi resolvido, conseguindo instrumentos de precisão capazes de fazerem componentes exactamente iguais. Em 1851, a companhia mudou o seu nome para American Horology Company e a produção começou numa nova fábrica. No final de 1852, os primeiros 17 relógios estavam prontos, assinados The Warren Mfg Co, tendo sido distribuídos entre funcionários da empresa. Os exemplares 18 a 100 foram assinados Warren Boston e os 800 seguintes chamaram-se Samuel Curtis. Uns tantos, assinados Fellows & Schell, venderam-se a 40 dólares. A empresa voltou a mudar de nome em 1853, para Boston Watch Company. Foi construída uma nova fábrica em Waltham, Massachusetts, nas margens do rio Charles. Em 1854, a companhia passou definitivamente a chamar-se Waltham, Massachusetts. Os movimentos fabricados em seguida (de 1001 a 5000) foram assinados Dennison, Howard, & Davis, P.S.Bartlett, e C.T. Parker. À beira da falência, a companhia foi vendida em leilão a Royal E. Robbins, que a reorganizou sob o nome de Appleton Tracy & Co. Usando esse nome, os movimentos seguintes foram numerados de 5001 a 14.000. A Waltham Improvement Co. fundiu-se em 1859 com a Appleton, Tracy & Co., formando a American Waltham Watch Company. Em 1860, com os Estados Unidos mergulhados na guerra civil, a produção quase parou, mas o Presidente da altura, Abraham Lincoln, ostentava orgulhosamente no célebre Discurso de Gettysburg um relógio Waltham. A companhia passou a ser o fornecedor oficial dos cronómetros dos Caminhos-de-ferro dos Estados Unidos, seguindo-se encomendas semelhantes de mais 52 países. Um dos auges da Waltham foi durante a I Guerra Mundial – fabricou milhões de relógios de pulso para os soldados norte-americanos que foram enviados para o teatro de guerra europeu. Outro surto de produção ocorreu pelas mesmas razões, durante a II Guerra Mundial. Ao longo da sua existência, a The American Waltham Watch Company produziu cerca de 40 milhões de relógios de grande qualidade, desde relógios de bolso, de pulso, de mesa e de parede, até instrumentos de precisão como cronómetros e cronógrafos. A companhia encerrou em 1957, não sem antes ter fundado uma filial suíça, em 1954, para tentar transformar-se numa marca Suiss Made. Todos os relógios Waltham têm um número de série e a sua história pode traçar-se consultando http://www.waltham.ch/cgi/waltham/search.asp. Quanto ao Waltham de bolso, em caixa de ouro, oferecido ao Comandante Sérvulo Álvares da Silva, terá sido produzido entre 1854 e 1857 para o retalhista Galt & Bro., Inc, ainda hoje existente em Washington. Segundo estes joalheiros e prateiros, o exemplar que pertenceu a Álvares da Silva
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