segunda-feira, 9 de novembro de 2009

Memória - O problema da Longitude em Comunicação à Academia de Ciências de Lisboa*

Qualquer local na Terra pode ser claramente identificado por duas coordenadas, que se cruzam: a latitude e a longitude. Desde cedo o problema da latitude foi resolvido, tanto em terra como no mar, ou pela medição da altura do Sol, ou pela medição da altura de outras estrelas ou planetas, à noite. No entanto, a questão da Longitude, mesmo em terra, demorou mais tempo a ser resolvida, devido à dificuldade de parâmetros fixos para a sua medição. Quanto ao achamento da Longitude no mar, a bordo de um qualquer navio, a questão revestiu-se de crucial importância a partir do momento em que a navegação deixou de se fazer com a costa à vista, por início do período da Expansão portuguesa, no início do século XV.

Duas aproximações, desde sempre, foram tentadas para a resolução deste problema da determinação da longitude no mar: a solução puramente astronómica, a solução astronómica com o auxílio da mecânica, mais propriamente recorrendo-se à arte de medir o tempo, a relojoaria.

O problema das longitudes ocupou durante séculos os saberes e as imaginações, sendo estudado intensamente como um problema exclusivamente astronómico entre 1600 e 1800. Os esforços que mobilizou levaram ao enorme desenvolvimento da Matemática no século XVIII e lançaram os fundamentos da ciência moderna. Neste sentido, a questão das longitudes terá sido, segundo muitos historiadores da ciência, o problema tecnológico mais importante de todos os tempos, não somente pelo seu impacto económico como, também, pelo tempo que resistiu à solução.

Na verdade, a questão da determinação da longitude no mar ganhou ao longo dos tempos uma tal aura de impossibilidade que se comparou este problema se apresentava tradicionalmente a par de outras questões míticas, como sendo a quadratura do círculo ou o moto continuo.

Com a urgência cada vez maior em se conseguir uma solução para o problema – a falta de uma medição exacta da longitude levava os navios a navegarem quase às cegas, julgando-se muitas vezes a milhas da costa quando estavam prestes a chocar com ela, como acontecia frequentemente – os monarcas europeus aceitavam nas suas cortes gente vinda de todas as paragens, sábios, astrónomos, matemáticos, mas também lunáticos, aventureiros, que se dispunham a resolver a questão.

Um exemplo: em Portugal, sabemos de um tal Felipe Guillén, boticário de Sevilha, que chegou a Lisboa em 1525 e se apresentou a D. João III, que o recebeu com grande expectativa. Dizia ele que resolveria a questão da determinação da longitude no mar através da variação da agulha na bússola. Descrito como “muito entendido e engenhoso, grande jogador de xadrez”, o espanhol chegou a receber dinheiro do monarca. Mas foi rapidamente desmascarado como charlatão, e preso, quando se preparava para fugir.

O escândalo foi tal, na época, que até Gil Vicente dedicou umas trovas ao atrevido, onde o pai do teatro português goza com a figura de quem prometia “tomar o sol pelo rabo em qualquer hora do dia” mas que não fora mais do que boticário “hasta ver esta ciudad” (Lisboa).

Desde muito cedo se sabia que uma hora de diferença de tempo solar corresponde a 15º de diferença de longitude, Leste ou Oeste segundo o lugar que tem a hora mais tardia. Assim, a diferença horária entre dois lugares é exactamente traduzível na diferença de longitudes. Se o tempo medido a bordo de um navio tivesse como termo de comparação o tempo nesse dado momento no ponto de partida, com cálculos simples se saberia a que longitude se encontrava a embarcação. Esta aproximação, tendo o tempo como instrumento, não tinha até então sido viável, porque os relógios mecânicos eram pouco exactos em terra, quanto mais no mar, sujeitos a balanços, humidade, variações drásticas de temperatura. Até muito tarde o tempo a bordo foi medido com o recurso a ampulhetas. Mas um pequeno atraso, uma desatenção na contagem das voltas por parte do marinheiro encarregado da ampulheta, e o tempo a bordo deixava de ser exacto, acumulando desvios de horas… que, traduzidos em graus de longitude, davam centenas de milhas de diferença.

Quem primeiro teorizou sobre a possibilidade de se trazer a bordo, “congelado”, o tempo do ponto de partida, em terra, foi Gemma Frisius, em 1530, mas a teoria ficou adormecida durante dois séculos, dado que não havia relógios mecânicos suficientemente exactos para serem úteis a bordo – para serem instrumentos aceitáveis, teriam que obedecer a parâmetros de exactidão de mais ou menos três segundos por dia, quando as máquinas mais exactas excediam, em terra, largamente nos séculos XV e XVI margens de erro de mais ou menos três minutos diários.

Só a partir do italiano Galileu, por volta de 1595, se ficam a conhecer as leis isócronas do pêndulo. E é apenas com o holandês Christian Huyghens (1629-95) que, em 1629, o pêndulo passa a ser aplicado aos mecanismos de relojoaria. O primeiro relógio feito especificamente com o propósito de se achar a longitude no mar foi construído em 1660. Esta máquina, que não chegou aos nossos dias, mas cujos esquemas estão completos, foi inventada por Huyghens. O relógio, equipado com uma corda em espiral, escape e pêndulo, conseguia manter-se em equilíbrio, apesar de quaisquer balanços do navio. Huyghens fez vários exemplares e chegou a testá-los, de 29 de Abril a 4 de Setembro de 1663, numa viagem feita de Londres a Lisboa. Este capítulo ignorado, indirectamente relacionado com uma História do Tempo em Portugal está registado no Museu Britânico. Os exemplares maiores trabalharam de forma mais ou menos regular, mas os mais pequenos pararam frequentemente e tiveram que ser desmontados, limpos e oleados durante a viagem. De qualquer modo, os relógios marinhos de Huyghens não provaram a sua exequibilidade e foram sendo abandonados.
Em 1707, mais de 2000 homens morreram quando quatro navios britânicos se afundaram ao largo das ilhas Scilly, a sul de Inglaterra. O caso chocou a opinião pública inglesa e o Parlamento de Londres promulga em 1714 uma lei oferecendo um prémio de 10 mil libras esterlinas “por qualquer instrumento idóneo para determinar a longitude com o limite de um grau; de 15 mil com o limite de 40 minutos; de 20 mil com o limite de 30 minutos”.

Astrónomos ilustres, como Newton, lançaram-se na corrida. Na acta da primeira reunião da Comissão de Longitudes, que iria supervisionar os candidatos, o próprio Newton, seu membro, afirma que “para a determinação da longitude no mar, tem havido vários projectos, verdadeiros em teoria, mas difíceis de executar”. E acrescenta: “Um deles, é o de utilizar um relógio, mantendo o tempo exacto. Mas devido à movimentação do navio, à variação do calor e do frio, à secura e à humidade, e à diferença de gravidade em diferentes latitudes, tal relógio ainda não foi fabricado”.
Seria, no entanto, um carpinteiro autodidacta, John Harrison (1693-1776) quem, desafiando o “establishment” e a inveja dos poderosos, conseguiu construir um relógio com pêndulo “giratório”, que consistia em nove pesos de vários metais, que eliminava assim os efeitos das mudanças de temperatura. O H1 tinha apenas corda para um dia. As partes móveis estavam contrabalançadas e, pela primeira vez, o relógio era independente do efeito da gravidade. Este aparelho de grandes dimensões pesava 33 quilos. Em 1735, Harrison levou o H1 até Londres e mostrou-o à comunidade científica, que se dividiu entre o cepticismo e a inveja.

Um ano mais tarde, e é por isso que esta epopeia da longitude terá que se incluir sempre numa História do Tempo em Portugal, o H1 parte para Lisboa, a bordo do navio Centurion. Esta e a viagem de regresso fizeram-se sem incidentes, tendo o H1 provado. Tanto que a comissão do prémio decidiu adiantar a Harrison 500 libras para que ele pudesse prosseguir os seus estudos e experiências.

Durante os 18 anos seguintes, Harrison realizou os H2 e H3, relógios que nunca foram experimentados em mar. Mas, em 1759, nasce a obra-prima, o H4, destinado a ser um ponto de referência na história da relojoaria. Tinha apenas 13 centímetros de diâmetro e estava colocado numa caixa de madeira. O relógio seguiu viagem a bordo do Deptford, com o filho de Harrison, William, que em 1761 zarpou para a Jamaica.

E, se Lisboa tinha sido escala na estreia do H1, a ilha da Madeira viria a ser desta vez escala nesta viagem do H4, que se demonstrou triunfal.
À sua chegada à Jamaica, depois de 5 meses de viagem, o relógio, tendo em conta as correcções estabelecidas por Harrison, tinha acumulado um atraso de apenas 5 segundos, equivalente a um cinquentésimo de grau. Mas o genial carpinteiro teve que esperar mais dez anos para receber o prémio entretanto reclamado.

Apesar do sucesso inicial, a entrada do cronómetro a bordo dos navios foi lenta, devido ao seu custo elevado e à prudência que ditava a necessidade de haver até três dessas novas máquinas a bordo, para se conseguir um erro menor, mediante médias ponderadas.

O problema da longitude no mar só foi verdadeiramente resolvido, na prática, quando, no início do século XX, o sinal horário começou a ser recebido a bordo, pela TSF.
Assim, podia determinar-se diariamente o chamado ‘estado do cronómetro’, que corresponde ao número de horas, minutos e segundos que se deve acrescentar à hora dada pelo cronómetro, para termos a hora de Greenwich.

Quanto ao posicionamento no mar, com as localizações via satélite, vulgo GPS (Global Positioning System), todo o romantismo que rodeou a “batalha da longitude” foi mais ou menos esquecido, mas grandes manufacturas relojoeiras continuam a fabricar hoje luxuosos e caros cronómetros de marinha, em metais raros e dentro de caixas de madeira preciosa, num hino a um dos mais belos instrumentos de medição do tempo que alguma vez a mente humana idealizou.

Além disso, os navios da Marinha portuguesa continuam equipados com cronómetros de marinha mecânicos – continuariam a funcionar em caso de avaria geral dos equipamentos eléctricos e electrónicos – e o Instituto Hidrográfico continua a fazer a manutenção destas máquinas.


Mas voltemos aos cronómetros marinhos e à sua relação com Portugal.

Foi o “estrangeirado” Jacob de Castro Sarmento, nascido em Bragança, em 1691, e falecido em Londres, em 1760, quem na sua Theorica Verdadeira das Marés, conforme a philosophia do incomparável cavalheiro Isaac Newton, de 1737, introduziu em Portugal as teorias deste sábio inglês. Ao mesmo tempo, dá conta na referida obra do cronómetro de marinha de John Harrison, de que já aqui falámos.

Em 1858 passava a funcionar em Lisboa o chamado Balão do Arsenal, que indicava, a partir de um sinal emitido pelo Observatório Astronómico da Ajuda, a hora de Lisboa, que servia para que os navios ancorados no Tejo acertassem os seus cronómetros.

Segundo relatos coevos, logo que ocorria a queda do balão, ao meio-dia médio, disparava também uma pequena peça de artilharia e faziam-se ouvir os apitos das embarcações ancoradas no Tejo, “manifestação que correspondia a um grito de festa, com que, por momentos, a cidade se animava”.

O Balão do Arsenal deu o seu derradeiro sinal à uma hora do dia 31 de Dezembro de 1915.

Os primeiros registos de cronómetros de marinha em Portugal são de 1789, mas essas máquinas desapareceram, sem deixar rasto. Quanto ao primeiro cronómetro verdadeiramente documentado, trata-se do nº 66, de John Arnold. Este instrumento aparece pela primeira vez mencionado em Agosto de 1800. No ano seguinte, há referência a um outro cronómetro Arnold, o 82. Ora, estes dois relógios são exactamente os referidos no manuscrito anónimo que nos trouxe aqui.

Quanto aos Arnold nº 66, terá ido parar ao Brasil. O seu “irmão” nº 82, entregue para reparação à oficina de instrumentos científicos de Lisboa, Haas, terá ardido num incêndio que entretanto ocorreu nas suas instalações.

John Arnold (1736-1799) é um dos mais famosos relojoeiros ingleses. Além de cronómetros, fez relógios de repetição para Jorge III, inventou um novo sistema balanço-espiral e um escape de “detent”.

Do ponto de vista teórico, em 1826, José Maria Dantas Pereira (1772-1836), faz publicar uma Memória sobre o Problema das Longitudes.

Este nome, de José Maria Dantas Pereira, leva-nos, finalmente, ao manuscrito anónimo que se encontra hoje na Academia das Ciências de Lisboa, a Dissertação sobre os métodos de achar a longitude no mar.

No documento, não datado, são referidos os cronómetros Arnold 66 e 82, sabendo-se que foram comprados por intervenção directa da Casa Real (o que é indicativo da sua importância e do seu preço). O último chegou a Portugal em 1801. Logo, o documento terá que ser posterior a essa data. Depois, são referidos dois nomes coevos dos do autor – Francisco António Ciera e Francisco de Paula Travassos. Ambos são oficiais de marinha, ambos sócios da Academia das Ciências. Quando falámos deste manuscrito ao Comandante Estácio dos Reis, ele inclinou-se logo para a possibilidade de ter sido José Maria Dantas Pereira o seu autor. É que também ele era oficial de marinha, colega dos outros dois na Academia, onde foi admitido em 1793. Comparados manuscritos de Dantas Pereira existentes no Arquivo Geral de Marinha com este, notam-se algumas semelhanças na caligrafia, mas não se chega a uma conclusão definitiva. Procurámos nos seus Escritos Marítimos e Académicos a bem do progresso dos conhecimentos da nossa Marinha, Indústria e Agricultura (1828), mas não encontrámos neles ou nas suas outras obras editadas referência à invenção explicada no manuscrito – o Phylicrase.

Consultámos o processo de Dantas Pereira na Academia das Ciências e também lá não vimos referência à Dissertação ou ao Phylicrase. Nas comunicações editadas da Academia, igualmente não encontrámos referências. Sabemos pelo próprio Dantas Pereira (no prefácio à Memória já referida) que ele fez uma comunicação à Academia Real das Ciências a 11 de Março de 1807, versando tábuas náuticas. Ora, em Novembro de 1807 dão-se as primeiras Invasões Francesas e a família real foge para o Brasil.
Caligrafia de José Maria Dantas Pereira e do manuscrito anónimo

Muitos oficiais de marinha, entre eles Dantas Pereira, acompanham a corte no exílio.
Resumindo: partindo da hipótese plausível de ter sido Dantas Pereira o autor do manuscrito agora publicado, a comunicação deverá ter sido feita entre 1801 e 1807, sendo provável que a Dissertação tenha sido escrita próximo da última data – com a confusão que se instalou, entretanto, no país, ou não chegou a ser apresentada à Academia, ou foi e, devido à agitação, não chegou a figurar nas Actas.

De qualquer modo, esta Dissertação é um contributo interessante para uma História do Tempo, da Relojoaria e das Mentalidades em Portugal – mesmo que o Phylacrase nunca tenha saído da sua fase experimental (o autor diz ter construído vários, mas nunca encontramos referência a tal engenho noutra qualquer fonte). O que era o Phylacrase? Tratava-se de um engenho na sua quase totalidade em vidro, cheio de água, munido de um termómetro e de uma câmara interior, onde o cronómetro de marinha seria colocado.

Através de um sistema de vasos comunicantes, do equilíbrio entre a mistura de água quente ou fria, a temperatura da câmara ia sendo controlada, para se manter estável. Isso permitia que os materiais do cronómetro não sofressem variações de tamanho e, assim, se mantivessem o isocronismo do movimento, o mais estável possível.

Para além disso, as alusões aos esforços para a determinação da longitude no mar, as considerações sobre o papel do mar na regulação do clima, as deliciosas referências aos termos chineses usados para conservar quente a refeição de doentes, tudo isto nos dá uma pequena, ainda que curiosa janela, sobre a mentalidade científica portuguesa do início do século XIX.

Portugal e a Ciência – um diálogo difícil, ao longo de toda a nossa História. O historiador norte-americano David S. Landes tem defendido em várias das suas obras, nomeadamente na controversa A Riqueza e a Pobreza das Nações que, a par com outra aparentemente tão comezinha como as lunetas, a invenção do relógio mecânico, um monopólio da Europa durante cerca de três séculos, foi crucial para a superioridade do Ocidente face ao resto do mundo, hoje uma realidade tão evidente, tão contestada e tão politicamente incorrecta.

O cientista Carlos Fiolhais chama à obra de Landes, “livro essencial, que explica com erudição inaudita como Portugal passou de um dos países mais ricos do mundo [séc. XVI] para um país do meio da tabela económica” e afirma: “Ficámos decadentes logo que perdemos as novas tecnologias, dos relógios e outras. Perdemos […] também a economia dos mares em favor dos fabricantes dos relógios, os ingleses e os holandeses.”
Esquema do Phylicrase
Uma última palavra – de esperança: um engenheiro português, Pedro Pedreira, acaba de ser eleito, por concurso público, e competindo com franceses, ingleses e outros especialistas das grandes potências europeias, como primeiro director executivo da Autoridade de Supervisão do Galileu, o sistema europeu de navegação por satélite, que trará à Europa autonomia em relação aos dois únicos sistemas actualmente existentes: o GPS (Global Positioning System), controlado pelos Estados Unidos, e o Glonass (Global Navigation Satélite System), gerido pela Federação Russa.

Portugal, que foi sujeito principal na primeira globalização, e que rapidamente perdeu a vantagem competitiva que isso lhe deu, mostra assim mais uma vez o valor do seu principal capital: o humano. Afinal, 300 anos depois de termos perdido a primeira, ganhámos esta Batalha da Longitude….

*Adaptado de comunicação apresentada à Academia de Ciências de Lisboa, em Maio de 2005. A manufactura Vacheron Constantin, que nessa altura comemorava 250 anos de existência, patrocinou a posterior publicação da comunicação, como edição de autor.
Para saber mais: História do Tempo em Portugal, Elementos para uma História do Tempo, da Relojoaria e das Mentalidades em Portugal (2003)

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