segunda-feira, 23 de novembro de 2009

Memória - O mundo de João Vaz de Carvalho*

Já por várias vezes falámos aqui de João Vaz de Carvalho, pintor e ilustrador de estilo único e identificável logo ao primeiro olhar.

Ele tem, ao longo de décadas, explorado um mundo muito próprio, cheio de reminiscências da infância. Os relógios são presença assídua nos ambientes que cria. Eis alguns exemplos:

O seu universo pictórico é frequentemente povoado por um certo tipo de personagens ou de objectos, que vão saltando de quadro para quadro, em contexto e cor diferentes, mas manifestando quase sempre a sua presença. O relógio é um desses casos – tem uma explicação para isso?

Na minha linguagem pictórica, os diversos objectos e personagens que povoam os quadros são como caracteres de uma escrita coleccionados ao longo do tempo. Grande parte deles vêm de uma época de vivências intensas e ganharam raízes profundas. Hoje, evocam-me as mais diversas emoções. Apropriei-me dessas imagens e utilizo-as como se utilizam as letras de um alfabeto. Relaciono-as, atribuo-lhes um significado e com elas construo novas histórias. Os relógios, alguns relógios, são também letras desse alfabeto. Normalmente despidos da sua função de medir o tempo, eles têm para mim o valor de adereços especiais, com vida própria. São peças de um cenário do passado que gosto de reutilizar.

O tempo de criação costuma ser diferente para os artistas – nesses períodos, como que há um alheamento em relação ao tempo comum. Isso passa-se consigo? Quando está a pintar “esquece-se” do tempo?

No momento da criação não tenho a mínima percepção da passagem do tempo. Recentemente dei conta de que já tinham passado vinte anos desde a minha entrega a tempo inteiro à pintura. Costumo dizer que estive tão absorvido que me esqueci de olhar para o relógio durante todo esse tempo. Talvez tenha a ver com o tempo do prazer. Passa mais depressa do que o tempo da contrariedade.

A sua pintura tem uma vertente mordaz, aparentemente infantil. Como é o tempo nas situações que retrata? Um tempo apressado ou lento? Um tempo adulto ou de criança?

Gosto da palavra mordaz. Creio que nos meus quadros nem tudo é óbvio. Na verdade, a aparência infantil oculta sempre um lado menos evidente. A possibilidade de um sorriso rapidamente se desvanecer para dar lugar a um momento de reflexão, talvez definam bem as coordenadas do meu trabalho. É uma zona de emoções contraditórias e de equilíbrio difícil, menos infantil. O tempo está parado naquele instante. Apesar de existir um movimento permanente de personagens e objectos sugerindo o desenrolar de uma história, de uma acção no tempo, só aquele instante está retratado. Tal como um frame perdido que pertence a um filme de uma história desconhecida. É verdade que houve um tempo de criança que me marcou. Não sei se me marcou especialmente a mim. Mas como é possível não ficar marcado por uma época em que acreditava que tudo o que a imaginação produzia poderia ser real? Acho que, de certa maneira, é desse território de liberdade que todos continuamos à procura. Eu reencontro-o na pintura.

Qual a sua relação pessoal, quotidiana, com o tempo? É uma pessoa que organiza o seu tempo, ou perde-se nele?

Todo o meu trabalho é planeado de forma a que o tempo seja totalmente aproveitado. É muito raro gastar um minuto procurando coisas perdidas, e a melhor forma de o evitar é ser organizado. O tempo de pintar, o tempo do trabalho menos criativo, o tempo da família e do lazer, acho que todos eles são complementares. Todos eles são fundamentais para o meu equilíbrio e para conseguir obter resultados na pintura. Com o passar dos anos, aprendi que só consigo pintar durante quatro ou cinco horas por dia. Depois disso a capacidade de concentração é afectada pelo cansaço e não vale a pena continuar, é preferível parar. Todo o outro tempo é aproveitado para fazer outros trabalhos. E há uma série infindável de pequenas tarefas a fazer.

E a sua relação com o relógio? Usa relógio de pulso? Tem relógios de parede em casa? E despertadores?

Deixei de usar relógio de pulso, tenho alergia ao metal em contacto com a pele. Há uns anos, comprei um relógio que sempre desejei ter, entretanto esse problema agravou-se. Nunca mais o usei. Tenho alguns relógios em casa que são para mim mais do que relógios, são objectos que me dão muito prazer. Gosto especialmente de um deles, é um relógio de parede, creio que dos anos cinquenta, da Reguladora, tem um sacristão que toca os sinos da igreja. É muito engraçado. Se eu fizesse relógios faria relógios assim. Tenho também alguns despertadores divertidos dos quais destaco um par de despertadores chineses dos anos 70, cujos mostradores representam o triunfo da revolução chinesa. Num deles, o ponteiro dos segundos é uma mão acenando com o livrinho vermelho, no outro, é uma lanterna vermelha que pisca ao ritmo dos segundos, erguida por uma bela revolucionária chinesa. Não falta uma locomotiva com os dias do calendário e o avião que substitui o ponteiro dos minutos apontando para a modernidade da China. Tudo isto sob o olhar de Mao. Acho muita graça aos relógios que nos mostradores têm coisas inesperadas em movimento. Entre outros, está aquele despertador vermelho, com aspecto de combate e que faz um ruído terrível. Quando despertava deslocava-se pela mesa fora, tal era a sua trepidação. Veio de casa da minha mãe, sempre o vi por lá. Em criança, acordava-me para ir para a escola. Agora é um daqueles que gosto de pintar.

*Entrevista publicada no Anuário dos Relógios & Canetas de 2008





















JOÃO VAZ DE CARVALHO

Fundão, 1958.
De 1981 a 1984 trabalha em Coimbra, no atelier de Vasco Berardo.

Exposições de pintura

1987 Galeria Arte, Coimbra.
Pousada Rainha Santa Isabel, Estremoz.
1988 Galeria Roca, Marinha Grande.
Pousada de Palmela.
Colectiva na Galeria Espiral, Oeiras.
1989 Loja 102, Galeria Altamira, Lisboa.
Colectiva no C. C. Olaias, Lisboa.
1990 Galeria Roca, Marinha Grande.
Galeria Altamira, Lisboa.
Colectiva na Galeria da SRTC, Funchal.
1991 Casa das Artes de Tavira.
1992 Galeria Altamira, Lisboa.
1993 Galeria Arte, Coimbra.
Galeria Roca, Marinha Grande.
1994 Colectiva na Galeria Miron-Trema, Lisboa.
1995 Galeria da Caixa de Crédito Agrícola, Fundão.
Feira de Arte Contemporânea, FIL, Lisboa.
Galeria Altamira, Lisboa.
1996 Feira das Artes, Braga.
Galeria Altamira, Lisboa.
Feira de Arte Contemporânea, Exponor, Porto.
1997 Galeria Edicarte, Funchal.
Feira de Arte Contemporânea, FIL, Lisboa.
Casa Museu Almeida Moreira, Viseu.
1998 Colectiva de Pintura e Escultura, Galeria Miron-Trema, Lisboa.
Galeria Miron-Trema, Lisboa.
1999 Colectiva Papéis, Galeria Miron-Trema, Lisboa.
Colectiva Percursos, Galeria Miron-Trema, Lisboa.
Galeria Miron-Trema, Lisboa.
Feira de Arte Contemporânea, FIL, Lisboa.
2000 Colectiva Papéis, Galeria Trema, Lisboa.
Colectiva Papéis, Galeria da SRTC, Funchal.
Marca Madeira 2000, Funchal.
Galeria Trema, Lisboa.
Feira de Arte Contemporânea, FIL, Lisboa.
2001 Colectiva Erotikós, Galeria Trema, Lisboa.
Galeria Trema, Lisboa.
ARTE LISBOA, FIL, Lisboa.
2002 Galeria Novo Século, Lisboa.
ARTE LISBOA, FIL, Lisboa.
2003 Galeria Novo Século, Lisboa.
ARTE LISBOA, FIL, Lisboa.
2006 Bedeteca de Lisboa.
2007 Galeria Trema, Lisboa.

Projectos

1999 H2O, azulejos para a Revigrés.
2000 19 telas para o Hotel Villa Rica.
2002 Gastromanias, azulejos para a Revigrés.
2005 João Vaz de Carvalho, chávenas de café para a SPAL.

Exposições de Ilustração

1998 Salão Lisboa de Ilustração e Banda Desenhada, Lisboa.
2001 Salão Lisboa de Ilustração e Banda Desenhada, Lisboa.
2002 Ilustração Portuguesa, Lisboa.
2003 Ilustração Infantil, CNBDI, Amadora.
Ilustrarte - Bienal Internacional de Ilustração para a Infância,
AMAC, Barreiro.
2004 Prémio Stuart/ El Corte Inglés de Desenho de Imprensa, Lisboa.
Ilustração Portuguesa, Lisboa.
2005 World Press Cartoon ,Centro Cultural Olga Cadaval, Sintra.
Ervilhas para Verdadeiras Princesas, bicentenário do nascimento de
Hans Christian Andersen, AMAC, Barreiro.
Ilustrarte, Bienal Internacional de Ilustração para a Infância,
AMAC, Barreiro
Prémio Stuart/ El Corte Inglés de Desenho de Imprensa, Lisboa.
2006 4ª Mostra de Ilustradores, Feira do Livro, Porto.
Animalaminute, Farol de Sonhos, Biblioteca Municipal de Cascais.
28 Histórias para rir, AMAC, Barreiro.
2007 28 Histórias para rir, Galeria Municipal, Abrantes.
Internationale Jugendbibliothek, An Imaginary Library, Munique;
III World Press Cartoon, Centro Olga Cadaval, Sintra; Prémio
Stuart/ El Corte Inglés de Desenho de Imprensa, Lisboa.

Livros infantis:

1997 7 Histórias de Animais da Quinta, Isabel Lamas, Impala.
1997 7 Histórias de Animais do Jardim, Isabel Lamas, Impala.
199¬7 Pela Casa Fora, José Jorge Letria, Livros Horizonte.
1998 Era Uma Vez... E Outra... E Outra..., Isabel Lamas, Impala.
2006 28 Histórias para rir, Ursula Wölfel, Kalandraka.
2007 El dia en que la mamá se le puso cara de tetera, OQO Editora.

Como ilustrador, tem colaborado em várias publicações, nomeadamente na realização de capas para livros para diversas editoras. Mantém, desde 1988, uma colaboração regular com a imprensa, tendo ilustrado para grande parte dos títulos nacionais, tais como: Marie Claire, Máxima, Cosmopolitan, Activa, Exame, Gentleman, Pais e Filhos, Rua Sésamo, Caras Decoração, Crescer, Casa Cláudia, Adolescentes, Homem/Relógios de Pulso, Noesis, Diário de Notícias/ Notícias Magazine, Expresso/Actual, Jornal de Letras, etc.
Em 1989 vence o 1º Prémio do Cartaz do Dia Mundial do Ambiente, promovido pelo Ministério do Ambiente.
Em 2005 vence o 1º Prémio da Ilustrarte 2005, ao qual concorreram 920 ilustradores de todo o mundo.

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