segunda-feira, 16 de novembro de 2009

Memória - Não há absurdo maior que um relógio público parado*

O Tempo mexe com tudo e todos, nada do que é Tempo nos é estranho. Ele passa pelos calhaus rolados, arredondando-os até os transformar em grãos de areia; ele assina a sua presença nos limos e outros organismos vivos que as marés vão depositando, ciclicamente, em camadas, nos rochedos da costa. Umas vezes somos mais rochas, a que o exterior se vai colando; outras, mais pedras rolantes, passamos antes pelo que nos é exterior e lá vamos deixando um pouco de nós. Há quem tenha mais de rocha encalhada, há quem seja mais seixo rolado. Mas, a tudo o que está imóvel ou a tudo o que se mexe, o Tempo trata por igual – tanto faz que seja ele a passar por nós ou nós a passarmos por ele.

Que esta minha intervenção possa entreabrir as portas de um Universo infinito, numa viagem que se quer sem grandes pressas ou demasiados vagares. Num equilíbrio entre rocha e calhau rolado.
Porquê o Tempo, a Relojoaria e a evolução das Mentalidades? Não sei muito bem como responder. Nascido e criado numa zona histórica de Lisboa, o Chiado, habituei-me desde miúdo a ouvir os sinos das igrejas das redondezas, que são muitas. Desde logo, a dos Mártires, uma das primeiras, se não a primeira, a ser construída depois da conquista da cidade aos Mouros por D. Afonso Henriques e onde ele terá mandado realizar a primeira missa na cidade reconquistada ao Islão. Eram marcações de tempo canónicas, feitas por sacristãos, que se faziam ouvir ainda claramente no início da segunda metade do século XX, porque a Lisboa dos engarrafamentos de trânsito ainda não tinha chegado e o Chiado, embora já despovoado de habitantes, continuava a ser o sítio de compras mais exclusivo, fervilhando de vida todos os dias. Mas a infância também foi povoada por relógios mecânicos públicos, como o do Teatro de São Carlos ou o do edifício da Companhia de Seguros Mundial. Mais tarde, o café de bairro foi A Brasileira, onde de novo um relógio, de parede, marcou o início de muitas noitadas…

Como quase todos os outros da minha geração, o primeiro relógio que tive, na década de 60, foi-me dado pelos pais, quando fiz a 4ª classe: um Cauny Prima 17 Rubis, de contrabando.

Com o equivalente aos meus primeiros três ordenados adquiri depois, já na década de 70, na Ourivesaria Portugal, ao Rossio, um Omega Speedmaster Mack IV. A paixão relojoeira tinha-se enraizado.

O mercado português estava nessa altura praticamente fechado à Alta Relojoaria, dadas as barreiras alfandegárias e o fraco poder de compra. Viajando de carro pela Europa, fazendo férias de Inverno, no regresso parava sempre dois ou três dias em Andorra. E aí tomava contacto, maravilhado, com peças que não havia em Portugal.
A viver em Beijing durante alguns anos, no final da década de 80, tive oportunidade de reforçar a minha pequena colecção de relógios mecânicos, com o que foi aparecendo vindo do mercado interno ou proveniente de uma União Soviética em desagregação.
De regresso a Portugal, procurei arranjo para algumas dessas peças. Disseram-me os relojoeiros consultados que várias não tinham arranjo. Mesmo assim, contactei a única escola de Relojoaria do país, na Casa Pia de Lisboa. E fui ajudado, desde logo, com conselhos e formação pelo Mestre Américo Henriques, que leva 45 anos à frente daquele centro de criação de gerações e gerações de relojoeiros.

Um pouco por “desporto”, comecei a escrever esporadicamente no PÚBLICO artigos sobre relojoaria. Passei a ir às feiras de Basileia e Genebra, os grandes encontros anuais do sector, a nível mundial. Criei um suplemento anual, Cronos – Pilares do Tempo, que vai agora na sua nona edição.

E, de repente, pelas circunstâncias da vida, dediquei a última década quase exclusivamente a fazer um levantamento multidisciplinar, o mais exaustivo possível, sobre o Tempo, a Relojoaria e a evolução das Mentalidades a eles ligada em Portugal. Algum desse material tinha saído em A Máquina do Tempo, secção da revista dominical do PÚBLICO, a Pública, em 2002 e 2003.

No final desse ano saiu História do Tempo em Portugal – Elementos para uma História do Tempo da Relojoaria e das Mentalidades em Portugal, prefaciado pelo então Presidente da República, Dr. Jorge Sampaio, ele próprio um meu atento leitor nas crónicas da Pública e um amante de relógios.

Desde então, tenho produzido ao ritmo de um livro por ano, uma série de obras relacionadas com o Tempo, os seus Medidores e a evolução das Mentalidades a eles ligada. [...]
É fascinante a aventura do Homem no Tempo, da evolução paralela das Mentalidades, da corrida técnica que as máquinas medidoras do Tempo têm protagonizado, ganhando de pleno direito um lugar de destaque na História do Conhecimento.

Portugal, que liderou durante umas dezenas de anos do século XVI o Saber europeu (ocidental, mundial), aquando do auge do seu período de Expansão marítima, através de saberes autóctones ou importados, cedo perdeu essa primazia e a sua relação (acerto) com o Tempo tem sido, desde então, sintomaticamente, difícil.

Desprezando, mais por ignorância do que por falta de meios, o seu património relojoeiro (especialmente o de torre), o país vai tendo, aqui e acolá, exemplos de sensibilidade, de mecenato, de protecção das Máquinas do Tempo que ainda não foram destruídas ou vendidas para o estrangeiro.
Instituições como o Palácio da Ajuda, onde está parte da colecção Real, o município de Santarém, com o seu Núcleo Museológico do Tempo, ou o Museu do Relógios, em Serpa, procuram também a dignificação de um acervo que se mistura muito com o Saber Científico, a Modernidade.

Em tempo de globalização, crise e outros estados de alma, um amigo com muitas gerações de sabedoria acumuladas na família dizia-me recentemente, citando Metternich, primeiro-ministro do há muito defunto Império Austro-húngaro: "A verdadeira obra-prima é durar”.

"Quem me dera ser neto de mim próprio", observava Napoleão.

O Tempo está na base dos recifes de corais, das estalactites e estalagmites das grutas, do bom vinho do Porto. Como diria Marguerite Yourcenar, “O Tempo, esse grande escultor…”.
Em 1830, F. Silvestre (possivelmente um pseudónimo), fez publicar em Tours, França, a obra L’Espagne et le Portugal Tels qu’on les voit – Notes et Impressions de Voyage. Nela, descreve assim o panorama relojoeiro de Lisboa em meados do séc. XIX:

“ [...] Lisboa, como em geral todas as cidades da Península, tem falta de relógios públicos. É certo que vemos raramente as pessoas a consultarem os seus relógios, e é mesmo muito provável que aquelas que surpreendemos nessa ocupação estejam apenas de passagem, e tenham importado esse hábito dos seus países de origem. Com efeito, os portugueses, bem como aliás os espanhóis, têm o hábito de observar a posição do sol que, desde o nascer ao ocaso, está sempre lá para permitir deduzir-se muito aproximadamente a hora, com a ajuda de uma simples observação. Devo também referir, para ser imparcial, que se encontram, de tempos a tempos, numa qualquer montra, suspensos algumas dezenas de relógios ingleses ou americanos; mas estou convencido de que os compradores são muito raros e todos estrangeiros.

“É verdade que a necessidade de possuir estas máquinas complicadas não se faz sentir em países ensolarados, como se faz com grande urgência na Flandres, na Alemanha e em certas regiões setentrionais onde o tempo nublado, de tempos a tempos, impede que se alcance o que quer que seja, e mesmo os olhos reforçados com óculos de lentes muito grossas não conseguem atingir os ponteiros dos relógios monumentais que cada edifício um pouco respeitável se orgulha de exibir”.
De então para cá, a situação só piorou. Quanto à sorte de relógios de sol e de relógios da chamada relojoaria monumental, de torre, grossa ou férrea, ela é hoje de autêntica hecatombe no país, mercê da insensibilidade das várias comunidades em perceber a importância do Tempo e dos seus Pilares – pedras ou mecanismos.

Desde a Igreja ao poder local, passando pelo Estado, a atenção dada ao património relojoeiro nacional tem sido escandalosamente nula, permitindo que peças de algum valor tenham, paulatinamente, seguido directamente para o lixo ou para o estrangeiro. E poucos parecem interessados em inventariar, restaurar e manter o património que resta. Que contraste com o que se vê na Europa Central, onde os relógios continuam a fazer parte do quotidiano dos burgos, que se sentem orgulhosos dessas peças.

A estima que essas comunidades nutrem pelos seus relógios públicos diz muito do grau de conforto com que elas lidam com três, quatro, cinco ou até mais séculos de uma História em que “aquele” Pilar do Tempo foi testemunha e por vezes actor.

Como colectivo, Portugal nunca lidou bem com o Tempo e isso explica muito do seu atávico atraso e das dificuldades por que agora passa.

Claro que até um relógio parado está certo duas vezes por dia. Mas esse “consolo” só serve, mais uma vez, para nos enganarmos a nós próprios e não tomarmos decisivamente o Tempo nas nossas mãos. O mal, afinal, como dizia o cronista do séc. XIX, é termos sol a mais…
Como explicar que, embora sendo vanguarda da aplicação (no terreno, neste caso no mar) do estado da arte do conhecimento científico do 500, Portugal não tenha criado nem nessa altura nem posteriormente uma massa crítica que criasse uma Escola Científica portuguesa, que produzisse instrumentos científicos, incluindo medidores do Tempo?

Cito o Professor Carlos Fiolhais: “Depois da época áurea dos Descobrimentos entrámos em “hibernação”. Fernando Pessoa escreveu com ironia: “Pertenço a um género de portugueses que, depois da Índia descoberta, ficaram sem trabalho”. Para continuar os Descobrimentos era preciso uma atitude que nós não fomos capazes de ter”.

As causas da decadência têm sido muito discutidas. O historiador norte-americano David Landes tem provavelmente razão quando aponta entre as principais causas a intolerância: “Quando os Portugueses conquistaram o Atlântico Sul, eles estavam na linha da frente das técnicas de navegação. A abertura para a aprendizagem com sábios estrangeiros, muitos deles Judeus, tinha trazido conhecimento que se traduzia directamente na aplicação prática (...) Mas em 1497, a pressão da Igreja Romana e de Espanha levou a coroa portuguesa a abandonar esta tolerância. (...) O declínio foi gradual. A Inquisição portuguesa foi instalada apenas na década de 1540 e queimou o seu primeiro herético em 1543; mas só se tornou cruelmente amedrontante a partir de 1580, após a união das coroas portuguesa e espanhola sob a pessoa de Filipe II de Espanha. Entretanto, os cripto-judeus, incluíndo Abraão Zacuto e outros astrónomos, acharam a vida em Portugal suficientemente perigosa para saírem em grandes números”.

Diz Carlos Fiolhais: “A ciência moderna começa com Galileo, que precisamente por volta de 1580 faz as suas primeiras investigações sobre o pêndulo, que seis décadas mais tarde haveriam de conduzir o primeiro relógio de pêndulo. Portanto, a revolução científica, marcada por uma revolução na medida do tempo, dá-se quando os nossos Descobrimentos tinham terminado e estávamos sob o domínio filipino. Foi um tempo em que perdemos, um tempo que perdemos...”

O tempo português – a relação mal resolvida com o tempo industrial, estandartizado – também ele é periférico? Porque é que os comboios (os transportes públicos, em geral) nunca andaram (nem andarão) a horas?

No século XIX a medida do tempo assume um papel central. Resolve-se o problema da determinação da longitude: foi um problema prático de construir um cronómetro que sobrevivesse aos solavancos marítimos. E os relógios em terra passaram a ser mais precisos. Aqui a palavra “precisos” tem um duplo sentido... Eram precisos relógios que dessem a hora certa para regular o funcionamento das fábricas e dos comboios. Com o telégrafo e mais tarde o rádio foi preciso acertar o tempo à escala planetária. O tempo do trabalho acelerou. E o tempo dos relógios globalizou-se. No Portugal do século XIX a industrialização não foi em larga escala e os meios de transporte não foram de massas. Para que era então precisa a autoridade da hora? “Quando todo o mundo passou a andar à hora certa, nós ficámos uma espécie de “aldeia de Astérix”, não nos importando demasiado com o tempo. Importava-nos apenas quanto bastasse. Os comboios já não andam a horas desde o seu início. Por que haveriam de andar agora?”, pergunta ele.
A ideia que os estrangeiros têm de nós passa muito pela ideia que têm do modo como os portugueses se relacionam com o tempo.

Curt Meyer Clason, no seu livro “Portugiesche Tagebucher” (Diários Portugueses), publicado em 1979 na Alemanha e nunca traduzido para português, diz que os relógios das torres das igrejas de Lisboa não dão as horas e que é raro encontrar dois relógios públicos que dêem a mesma hora. Fala depois de conceitos muito peculiares nossos como o de “tardinha”, qualquer coisa entre as 6 e as 8 da noite. Para ele, este é um país onde nunca é tarde, pois no sistema de tempo português, “o que é tarde e o que não é tarde determinamos nós”.

Marion Kaplan, jornalista britânica, editava em 1991 outro livro, onde dizia que “os portugueses têm pouca noção do tempo, nunca têm pressa: amanhã não quer dizer ‘tomorrow’ mas um tempo qualquer”.

O Professor Carlos Fiolhais pergunta: “Como pode uma universidade com um permanente quarto de hora de atraso – o quarto de hora académico – ensinar com rigor quantitativo a teoria da relatividade sobre o espaço e o tempo?”

Citando José Pacheco Pereira, não é verdade que, em Portugal, “as pessoas pontuais perdem imenso tempo” (à espera dos outros)?
Para terminar, citemos de novo Pessoa:

Passo horas, às vezes, no Terreiro do Paço, à beira do rio, meditando em vão. […]

O Tejo ao fundo é um lago azul, e os montes da Outra Banda são de uma Suíça achatada. […]

Definiu César toda a figura da ambição quando disse aquelas palavras:
“Antes o primeiro na aldeia do que o segundo em Roma!” Eu não sou nada nem na aldeia nem em Roma nenhuma. Ao menos, o merceeiro da esquina é respeitado da Rua da Assunção até à Rua da Vitória; é o César de um quarteirão. Eu superior a ele? Em quê, se o nada não comporta superioridade, nem inferioridade, nem comparação?

É César de todo um quarteirão e as mulheres gostam dele condignamente
.

E assim arrasto a fazer o que não quero, e a sonhar o que não posso ter, a minha vida, absurda como um relógio público parado”. […]

Arriscaria que Bernardo Soares / Fernando Pessoa, ao saírem do Martinho da Arcada, e olhando inúmeras vezes para o relógio do Arco da Rua Augusta, se terão inspirado nele para este pensamento desassossegado.

O que é caro não é fazer, é manter.

Acaba de ocorrer uma intervenção de fundo no relógio do arco. Um mês volvido, o relógio anda, mas não anda lá muito certo. O tempo passará e, arrisco, com o passar do tempo o relógio parará, para ficar de novo espelho perfeito da nossa realidade.

Não há nada mais absurdo que um relógio público parado. Portugal, um país absurdo?

Este é o tempo português, esta é a nossa modernidade?

* Comunicação feita a membros do Clube dos Entas, no terraço do Arco da Rua Augusta (Lisboa, 20 de Janeiro de 2008)

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