segunda-feira, 30 de novembro de 2009

Memória - Como o Relógio chegou à China, ou Diálogos entre a Esfera e o Dragão*

Imagem evocativa dos padres jesuítas, mandarins na corte de Beijing

Em 1557 já existia em Macau uma pequena colónia de portugueses, além de mercadores de outros países. Em 1560 já havia uma espécie de governo rudimentar do pequeno território, com “capitão-de-terra”, ouvidor e bispo, bem como uma guarnição militar permanente. Pagava-se, desde o início, às autoridades regionais o chamado “foro de chão”, como que o reconhecimento de que a soberania chinesa não era posta em causa – era uma espécie de “leasing” do território.

Cerca de 1582, no anónimo Livro das Cidades e Fortalezas Que a Coroa de Portugal Tem no Estado da Índia, uma espécie de relatório feito para Filipe II de Espanha, o novo soberano das coroas ibéricas, afirma-se: “ […] posto que a terra seja do rei da China que nela tem os seus oficiais que recebem direitos que ali se pagam, são governados pelas leis e ordenações deste reino de Portugal […]”. Macau surge, pois, caracterizado como território chinês sob administração portuguesa, a fórmula encontrada para os anos de preâmbulo do desfecho deste processo, em 20 de Dezembro de 1999, quando o território voltou à administração chinesa.


Desde o início que a Companhia de Jesus esteve ligada ao destino de Macau (os três primeiros padres chegaram ao território em 1562). Fundada como resposta de Roma ao movimento da Reforma, a nova ordem religiosa aproveitou a Expansão portuguesa, “colou-se” a ela, onde quer que ela fosse. O Oriente não foi excepção. O objectivo era “conquistar” pela fé aqueles desconhecidos, imensos e superpovoados territórios. E Macau, onde o primeiro bispo “do Japão e da China”, D. Melchior Carneiro, chega em 1568, era a antecâmara do Padroado Português do Oriente (monopólio religioso concedido pelo papa a Lisboa), que ali preparava os seus agentes evangelizadores no contacto com os hábitos e a língua dos gentios. Mas a resistência da China à entrada dos padres era grande.
Um dos religiosos dessa época, Francisco de Sousa, relata que, em 1582, ocorreu um incidente “do qual com maior fundamento se podia esperar serem os portugueses lançados de Macau, que os padres admitidos na China”.
Beijing tinha mudado de vice-rei de Cantão, a província que tinha poder administrativo sobre Macau. O novo mandarim acusava os portugueses de estarem a usurpar a justiça imperial, por levantarem tribunais ou decidirem causas. Além disso, estariam a “meterem estrangeiros em terra firme”, especialmente japoneses e cafres. Mandou o vice-rei que o Capitão de Macau e o seu Bispo, Belchior Carneiro, comparecessem perante si, em Chaoqin, no continente, onde residia. Os portugueses enviaram em nome do Capitão, o Ouvidor; em nome do Bispo, os religiosos Miguel Rugieri e Francisco Pacio.
Depois de um primeiro encontro, aprazível, em que a delegação ocidental apresenta sedas e cristais de presentes ao vice-rei (que as paga), faz-lhe chegar posteriormente a informação de que dispunha de “uma máquina de aço toda de rodas por dentro, que continuamente se moviam por si mesmas, e mostravam por fora todas as horas do dia e da noite, e ao som de uma campainha dizia o número de cada uma delas”.
E, perante a curiosidade ansiosa do vice-rei, dá-se o facto histórico: a 27 de Dezembro de 1582, os italianos Rugieri e Pacio fazem o que se pensa ser a introdução do primeiro relógio ocidental na China. Seria, segundo o que se sabe, um relógio de mediana grandeza, “obrado por excelente artífice”, e mandado da Europa ao padre português Rui Vicente, que o destinou à missão da China.
Apresentado o relógio, nas palavras de Francisco de Sousa, “foi o pasmo igual à novidade, e seria dobrado o gosto do vice-rei, se pudesse acomodar-se ao uso da China, que medindo o dia natural da meia-noite à meia-noite, como nós fazemos, não o reparte em vinte e quatro, senão em doze horas iguais: nem contam as horas por números, dizendo uma, duas e três, mas dão a cada uma delas o seu vocabulário misterioso, e alusivo segundo a sua crença”.
Segundo alguns historiadores chineses contemporâneos, o presente do relógio mecânico ao vice-rei de Cantão foi essencial para lhe ganhar as boas graças e conseguir a permanência dos portugueses em Macau. Sustenta ainda que foram os relógios – e outra mercadoria rara e idolatrada, o âmbar cinzento – que abriram a corte imperial, em Beijing, aos jesuítas, que tinham facilidades de comércio em toda a região.
Ganhar as graças do vice-rei de Cantão, era uma coisa. Mas chegar a Beijing, a milhares de quilómetros de distância, era outra. Os fundadores da Missão católica na China, os italianos Michele Ruggieri e Matteo Ricci, acompanhados de outros jesuítas, como os portugueses António de Almeida e Duarte de Sande, conseguiram atingir, depois de longa e complicada viagem, a corte imperial — estava-se a 24 de Janeiro de 1601. A embaixada religiosa levava consigo vários presentes. É claro que os relógios não podiam faltar. Os objectos não eram entregues directamente ao imperador, mas antes ao grupo de eunucos que verdadeiramente detinha o poder na Cidade Proibida.
Como as leis ditadas pelo Tribunal dos Ritos impediam ao monarca, um dos últimos da dinastia Ming, de admitir na sua presença quaisquer estrangeiros, ele ordenou que lhe mostrassem os objectos trazidos por Ricci, examinando-os longamente. Um relógio de grandes dimensões, outros relógios médios e um relógio com música atraíram-lhe particularmente a atenção. Os padres foram chamados à antecâmara imperial, para pôr os mecanismos em marcha e para ensinar os eunucos a maneira de dar-lhes corda. Construiu-se mesmo nos jardins do palácio, por ordem imperial, uma torre elevada para colocar nela o relógio maior.
Dias mais tarde, quando a corte pressionava para que os jesuítas se fossem embora (estavam ali na qualidade de embaixadores tributários de Portugal e não de missionários), foram os próprios eunucos que se opuseram a que tal ocorresse, temendo não ser capazes de dar convenientemente corda aos relógios ou, sobretudo, de concertá-los, se avariassem.
Na visão dos historiadores chineses já referidos, os missionários terão assim conseguido estabelecer-se na corte, de forma residente, mediante o estatuto de relojoeiros, ganhando as graças do imperador (conta-se que, pressionado, este terá enviado à mãe um dos relógios, mas que terá mandado desligar o sistema musical, para que ela não ficasse demasiado fascinada com mecanismo tão precioso... e o devolvesse, como veio a acontecer).
Segundo relato do francês Du Halde (Descrição Geográfica, Histórica, Cronológica, Política do Império da Tartária Chinesa, de 1683), depois do primeiro espanto quanto a relógios, “os príncipes cristãos, cheios de zelo pela conversão de tão grande império, ajudaram aos missionários de uma maneira generosa e os gabinetes do imperador, em pouco tempo, se encontraram replenos de todas as espécies de relógios, a maior parte deles de uma invenção rara e de um trabalho extraordinário”.
Além dos que eram destinados directamente ao imperador, os relógios de melhor qualidade (e, obviamente, os mais caros) vinham directamente da Europa, nomeadamente da Alemanha ou da França, comprados pelos comerciantes ou pelos missionários aos negociantes portugueses em Macau.
Mas as somas pagas eram incomportáveis e os missionários passaram a fabricar eles próprios relógios e autómatos. Entre os construtores de tais admiráveis “sinos que tocam sozinhos”, o nome dado pelos chineses às misteriosas máquinas relojoeiras, contavam-se os padres portugueses Gabriel de Magalhães e Tomás Pereira.

Este último, nascido em 1645, em São Martinho do Vale, concelho de Barcelos, foi uma das figuras mais polifacetadas e curiosas entre os jesuítas portugueses a servirem no Oriente.

Em 1672, estando ele em Macau, o imperador Kangxi (já da dinastia Qing, grande admirador das técnicas ocidentais, apaixonado pelos relógios, chegando a fazer poemas sobre eles), mandou chamá-lo a Beijing, devido às referências que ouvira dele por parte de outro jesuíta, o belga Ferdinand Verbiest. Ficou por lá os 35 anos seguintes, até morrer, em 1708. Músico de formação, construía os seus próprios órgãos e, aplicando os conhecimentos musicais e mecânicos, construiu mesmo um enorme carrilhão, com relógio, que colocou numa das torres da igreja dos jesuítas, na capital do império.

Os jesuítas, a elite europeia daquele tempo, eram gente de muitos talentos, não se limitando ao conhecimento da mecânica aplicada à relojoaria. Fabricavam outros instrumentos científicos, como lunetas. Sabiam da língua, fazendo os primeiros dicionários e gramáticas de chinês para línguas ocidentais; sabiam de cartografia, desenhando as primeiras representações do novo mundo a uma corte chinesa habituada a “estar no meio”; sabiam de música, de pintura, eram diplomatas. Quase todos eles eram também astrónomos. A previsão acertada de um eclipse solar em Junho de 1629 permitiu aos jesuítas, com o seu método, ganharem aos “adversários” que a corte lhes tinha apresentado – adeptos dos métodos tradicional chinês e islâmico. Nesse ano, são nomeados os primeiros astrónomos ocidentais para o chamado Tribunal das Matemáticas, até então sob direcção de quadros islamizados (Adam Schall, Gabriel de Magalhães, Manuel Dias, Ferdinand Verbiest, Tomás Pereira, Terrencius são alguns dos jesuítas que ascendem ao mandarinato, responsáveis pela modernização do pensamento científico chinês no século XVII).

Este Tribunal das Matemáticas, crucial na administração do poder, interface entre os deuses no céu e o Imperador-deus na terra, destinava-se a fazer os calendários, a prever os eclipses, a fabricar e manusear os instrumentos científicos necessários a essas missões.
Matteo Ricci, em carta para Roma, em 1605, dizia: “Estes globos, relógios, esferas, astrolábios, e outros, que fiz e cujo uso ensino, deram-me a reputação de ser o maior matemático do mundo.
Não tenho um único livro de astrologia, mas apenas com a ajuda de algumas efemérides e almanaques portugueses, prevejo por vezes eclipses mais acuradamente” que os 200 funcionários chineses e árabes empregues pelo imperador para a feitura do calendário.
Os padres, aos olhos dos mandarins chineses, tinham muito menos uma função religiosa ou de proselitismo (quando os jesuítas seguiam esses caminhos eram expulsos ou tinham outros problemas) e muito mais uma função de especialistas técnicos. Esse Tribunal das Matemáticas não era mais do que um Observatório Astronómico, que aliás ainda hoje existe em Beijing, embora a maioria dos instrumentos que lá estão sejam réplicas (os genuínos, anteriores à chegada dos ocidentais ou construídos pelos jesuítas, foram pilhados por assaltos sucessivos de revoltas internas ou invasões estrangeiras).
O Observatório Astronómico de Beijing, ao tempo dos padres/mandarins e na actualidade

Os jesuítas tinham outros observatórios astronómicos instalados nos terraços das suas residências, em Beijing. Com as observações de eclipses, determinavam com exactidão as coordenadas geográficas das várias cidades chinesas.

Na Academia das Ciências, em Lisboa, há relatos dessas observações astronómicas. Uma diz respeito ao eclipse solar ocorrido a 15 de Julho de 1730, medido pelos padres André Pereira e Inácio Kegler. André Rodrigues faz, no final do século XVIII, um balanço que manda para aquela instituição, das dezenas de observações de eclipses solares e lunares entre 1753 e 1794.

Dos globos construídos pelos ocidentais em Beijing, conhece-se hoje apenas um exemplar, e que se encontra na British Library, Londres. A esfera, de madeira pintada e lacada, com diâmetro de 59 cm, correspondendo a uma escala de 1/21.000.000. Como refere o especialista Estácio dos Reis, o chamado globo chinês, executado em 1623, “baseia-se nos conhecimentos geográficos da época mas, especialmente, está apoiado no planisfério desenhado por Matteo Ricci em 1602”. São seus autores os jesuítas Manuel Dias, o Jovem (Castelo Branco, 1574 – Beijing, 1659) e Nicolo Longobardi (1559, Sicília – 1654, Beijing).

Sabe-se que Gabriel de Magalhães produziu em Beijing pelo menos dois importantes relógios destinados à corte imperial. O primeiro, destinado ao imperador Shuanzi, o iniciador da nova dinastia manchu (Qing), datava de 1656-57. Pouco se sabe dele, excepto que custara um preço elevadíssimo e que os materiais necessários à sua manufactura tinham sido adquiridos pelo próprio Magalhães em Macau. O seu rasto perdeu-se no conturbado período que sucedeu à morte de Shuanzi, em 1661. Do segundo, produzido para o imperador Kangxi, em 1667, após um período de perseguições religiosas aos cristãos chineses, conhecem-se mais pormenores. A sua produção teve lugar numa oficina contígua à residência dos jesuítas em Beijing, e foi efectuada por artífices locais, sob supervisão de Magalhães, que também foi o autor dos planos de todo o mecanismo. Além das horas, dava música e fazia accionar autómatos. Este relógio ficou célebre na época e agradou tanto a Kangxi que este ordenou a sua colocação no seu quarto de dormir. Desta e doutras peças importadas ou feitas pelos jesuítas perdeu-se o rasto, mercê das revoltas internas e invasões externas que já referimos.

Gravura de du Halde, representando um relógio construído por Gabriel de Magalhães em Beijing
Um “estrangeirado”, João Jacinto de Magalhães, estando a viver em Londres, escrevia em 1782 ao governante português Martinho de Melo e Castro, sobre os instrumentos científicos que lhe tinham sido encomendados e destinados ao bispo de Beijing (continuava a preocupação portuguesa e da instituição Igreja de abrir as portas do Império do Meio através de uma superioridade técnica e científica).

O mesmo João Jacinto de Magalhães tinha escrito em 1768 ao seu compatriota Ribeiro Sanches (na altura a servir como médico na corte russa, em São Petersburgo) dando-lhe conta de que fora ver umas “máquinas prodigiosas e preciosas” que, de Inglaterra, iam ser remetidas aos imperadores da China e do Mogol (Índia), constituídas por figuras de animais, que eram movimentadas por um sistema de relojoaria.

*Adaptado de texto produzido para um livro com o mesmo nome, editado pelo Instituto Camões

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