Uma coisa em forma de assim
Tentava a senhora dizer o que vira, mas não encontrava (ou não tinha) as palavras. Fazíamos os dois conversa. Mais precisamente: troca de monólogos. Através da senhora, recontei a mim mesmo, com pormenorizadas mentiras, a morte desse que fora o meu pai. Pus um tal realismo no relato imaginoso do passamento de “o pai”, que a senhora descruzou as pernas e as abriu (diria, escancarou) como se quisesse acolher e sepultar o pobre do morto no seu ventre. Pensei: “A poltrona recebe a senhora, a senhora recebe o meu pai.”
Ela cortou, então, a fatia de tempo que lhe cabia (era a sua vez) para, cruzadas de novo as pernas, me contar como a quinta do Alto Minho se perdera. Disse: - A mãe tentou tudo, mas… Hipotecas. Vencimentos. Moratórias rogadas e negadas. Malvadez de credores. Ponto final.
Dentre os salvados da quinta do Alto Minho, um relógio de caixa viera deixar de trabalhar para a casa citadina da senhora. Explicou: - Os relógios de pesos são muito difíceis de acertar. E prosseguiu: - Em pequenita, eu tinha um sonho, um sonho muito esquisito e que se repetia sempre…
Eu disse: - Sim? Ela: - O relógio – este que o senhor está a ver – batia – claro, isto no sonho – vinte e quatro badaladas. Abria-se então a porta da caixa e saía uma coisa assim. Não lhe sei dizer. Era uma coisa em forma de… Assim.
A senhora arredondava para mim gestos indefinidos. Continuou: - Eu acordava sempre nesse momento do sonho, assustada e alagada em suor. Que acha o senhor que poderia ser? Tropecei no cliché “alagada em suor”. Disse: - Não sei. É difícil saber.
Olhei para o relógio. Imaginei-o sonhado pela adolescente que vivera naquela mulher. Depois desinteressei-me desses não-pensamentos. Construí, então, outra ilha de palavras. Durante a construção, ela descruzou e escancarou as pernas, mas a sua atitude, bem diferente da que parecera assumir ao princípio, era a de quem queria devolver-me, a todo o custo, esse que fora o meu pai.
Alexandre O’Neill, (1924 – 1986)
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