segunda-feira, 19 de outubro de 2009

Memória - a Casa Museu Medeiros e Almeida* e a sua colecção de relógios


Durante décadas, em meados do século XX, um empresário português foi discretamente licitando em Portugal e, sobretudo, no estrangeiro, os melhores relógios que iam aparecendo a leilão.

Recebia com antecedência catálogos das grandes casas leiloeiras, avisando-o das peças que iam à praça, usava “olheiros” em Paris ou Genebra para comprovar da sua qualidade e até para as licitar. Quando morreu, António de Medeiros e Almeida era senhor de uma fabulosa colecção, a melhor do país – e uma das mais importantes do mundo em termos de peças assinadas por aquele que é considerado como o maior relojoeiro de todos os tempos, Abraham-Louis Breguet.

Depois de alguns anos de impasse, Lisboa ganhou finalmente acesso a um Tesouro que inclui ainda porcelanas, pratas, mobiliário, pinturas, fazendo da Casa-Museu Medeiros e Almeida um local que vale a pena descobrir e, calmamente, desfrutar.

No meio do bulício citadino, bem junto à Avenida da Liberdade, um vasto palacete com três pisos e dois andares de sótão em mansarda, ao estilo parisiense do século XIX, com garagem e jardim domina o gaveto entre as ruas Rosa Araújo e Mouzinho da Silveira. Edifício-sede da Nunciatura Apostólica em Lisboa, é adquirido em 1943 por Medeiros e Almeida, que aqui fixa residência com a mulher.
“As obras de adaptação obedecem a um programa decorativo assente no gosto de uma alta burguesia cosmopolita dos meados do século XX”, diz-nos Teresa Vilaça, directora da hoje Casa-Museu. “Na generalidade, mantém-se a decoração tal como ela foi idealizada pelos donos da casa, reflectindo a evolução que sofreu à medida que novas peças iam sendo adquiridas até aos finais dos anos sessenta, data em que aqui viveram”. Objectos de uso pessoal foram mantidos em alguns recantos da casa, para relembrar o ambiente de época.
Nascido em Lisboa em 1895, filho de pais açorianos, com um pai médico de sucesso na capital, António de Medeiros e Almeida ainda cursa Medicina em Coimbra, em 1916, mas desiste e cedo se integra na vida empresarial. Depois de uma estadia em Berlim, casa com Margarida Pinto Basto e inicia o negócio de importação de automóveis – representa a Morris e outras marcas britânicas, mantendo desde então forte ligação a Londres.

Próximo do embaixador da Grã-Bretanha em Lisboa, Sir Ronald Campbell, “torna-se seu confidente e mensageiro nos tempos conturbados da segunda guerra mundial, ajudando a gerir as tensões entre Winston Churchill e Salazar, relacionadas com a estratégia envolvendo as águas territoriais e instalações portuárias portuguesas, no delicado contexto da neutralidade do país e perante a invocação pelo lado inglês da velha aliança entre as duas nações”, afirma João de Almeida, um dos seus biógrafos.

Os serviços prestados a Londres “serão oficialmente reconhecidos no pós-guerra, quando Medeiros e Almeida é condecorado pelo Governo britânico e convidado por Salazar a exercer o cargo de embaixador de Portugal na Grã-Bretanha”, acrescenta. Mas o convite é declinado, alegando Medeiros e Almeida o seu empenho exclusivo nas múltiplas actividades empresariais em que se acha envolvido – navegação marítima, pescas, reparação naval, seguros, fabrico de tabaco, açúcar e álcool, aviação civil, têxteis, hotelaria…
No início da década de setenta do século XX, e por sugestão da Presidência da República, consegue reunir importantes fundos para edificar casas destinadas a famílias socialmente desfavorecidas, no âmbito de uma instituição a que é dado o nome de Fundação Salazar.
“Tendo nascido numa família em que o interesse pela arte e pelas antiguidades era parte do dia-a-dia, António de Medeiros e Almeida cedo desperta para o gosto de coleccionador”, explica João de Almeida. Margarida, a mulher, a cuja família pertencia a prestigiosa Manufactura de Porcelana da Vista Alegre, partilha com o marido a vontade de decorar com o máximo requinte a nova residência. “Dá-se então início a uma busca incessante de belas peças, a começar por mobiliário de qualidade compatível com a imponência da casa”, diz.

Medeiros e Almeida percorre os antiquários de Paris, Londres e Lisboa, vindo mais tarde a fazer de alguns deles seus consultores habituais. Frequenta os mais afamados leilões internacionais, passa a ser conhecido, chegando a disputar peças aos principais museus da Europa. “Com estes contactos, e tendo criado uma vasta biblioteca de arte e das melhores colecções de revistas e catálogos da especialidade, torna-se um verdadeiro conhecedor, progressivamente mais exigente e selectivo”.
Para transformar em museu a casa que habitava, Medeiros e Almeida transfere em 1970 a sua residência para uma moradia contígua, mas o recheio não é transferido, permanecendo intacto no seu enquadramento original.

Em 1973, dá-se a ampliação da casa, devido à falta de espaço com as novas aquisições, construindo-se um corpo de dois pisos na área do jardim. Nesse mesmo ano, nasce o museu e a Fundação Medeiros e Almeida, sendo doados a esta última os bens imobiliários e colecções de arte. O facto de o casal não ter filhos facilita todo o processo. Medeiros e Almeida faleceu em 1986, aos noventa e um anos. O processo de consolidação da autonomia financeira da fundação mantém a casa-museu encerrada durante alguns anos, com a reabertura a ocorrer apenas em 2001.

Mobiliário francês, inglês e português de autor; pintura holandesa, flamenga e inglesa; tapeçarias flamengas e francesas; azulejos portugueses; porcelana e terracota chinesa (com um dos mais importantes núcleos de peças Ming existentes no país); pratas portuguesas e inglesas, tapetes orientais e franceses, lustres de cristal, lacas chinesas, leques europeus e chineses, são núcleos importantes nesta residência da alta burguesia lisboeta do século XX.
Mas, a colecção de relógios, essa, tem um lugar à parte. “Vastíssima e excepcional”, é como pode ser referida por especialistas. Abrange quatro séculos de produção e integra várias peças históricas, como o relógio de noite da rainha Catarina de Bragança, mulher de Carlos II de Inglaterra, ou o aparatoso relógio de mesa em cristal de quartzo e lápis-lazúli, oferecido por Luís da Baviera à imperatriz Sissi da Áustria.
“Os relógios são objectos de verdadeira e especial paixão de António de Medeiros e Almeida”, refere-nos o seu biógrafo.
A colecção é constituída por cerca de setecentas peças, estando apenas expostos 236 relógios. Alguns estão espalhados pela casa, nos locais de uso residencial, mas a maioria está concentrada na chamada Sala dos Relógios – há-os de coluna, de mesa, de parede, de carruagem, de marinha, de bolso – quase todos mecânicos, mas também alguns de sol. Relógios da Real Fábrica do Rato, fundada pelo Marquês de Pombal, ou de relojoeiros portugueses dos séculos XVIII e XIX, peças raras, estão igualmente incluídos no acervo.
Das sete vitrinas onde se encontram expostas as peças de menores dimensões, uma é dedicada em exclusivo a 26 exemplares fabricados na manufactura francesa Breguet – um número já de si excepcional em qualquer colecção mundial. Mas alguns deles são peças assinadas pelo próprio Abraham-Louis Breguet, o fundador da Casa e inventor de várias complicações relojoeiras, a mais famosa delas o turbilhão. Relógios deste tipo raramente vão à praça, estão quase todos em museus ou nas mãos da marca Breguet (hoje pertença do grupo relojoeiro Swatch, o maior do mundo), que vai arrematando os poucos que aparecem para o seu próprio museu.
São poucas as colecções, em todo o mundo, que possam ostentar tantos Breguet. Dado o dinheiro, o gosto e o filantropismo de António de Medeiros e Almeida, Lisboa está obrigatoriamente no circuito mundial dos museus de relojoaria.
*Publicado no Anuário dos Relógios & Canetas de 2004

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