segunda-feira, 31 de agosto de 2009

Memória - Utopia Mecânica IV

Piotr Kropotkin, o “Príncipe Anarquista”

Prosseguimos a viagem pela Utopia Mecânica – o fascínio que a Relojoaria e os relojoeiros exerceram desde sempre sobre pensadores, políticos, filósofos, sociólogos, como metáfora ou como comunidade perfeita que pode servir de exemplo para uma organização social mais justa.

Falemos agora de Piotr Kropotkin, um nobre russo nascido em 1842, em Moscovo. Foi como topógrafo e geógrafo que percorreu a Sibéria e a Manchúria, tomando contacto com as condições de vida miseráveis do seu povo. Movendo-se nos meios anarquistas, deles bebeu as ideias de Justiça e Igualdade Social, começando a militar por elas.

Em 1872, Kropotkin realiza uma viagem à Bélgica e à Suíça, onde mantém contactos com o movimento anarquista da Federação do Jura, tendo-se filiado na Associação Internacional dos Trabalhadores (AIT), vulgarmente conhecida como Primeira Internacional.

De volta à Rússia, milita em grupos clandestinos e é preso pelo regime czarista. Consegue fugir e exila-se no Ocidente, retomando os contactos com os anarquistas suíços, onde os relojoeiros tinham grande peso, fundando e editando em Genebra, em 1879, o jornal Le Révolté. É de novo preso em França, em 1882.

Libertado em 1885, depois de um movimento de opinião pública a seu favor, liderado por Herbert Spencer, Eernest Renan ou Victor Hugo, refugia-se na Inglaterra, onde continua a conviver com os grandes vultos do seu tempo e colabora na célebre Sociedade de Geografia.

Nas suas obras, Kropotkin tenta construir uma base científica para o pensamento anarquista. Usa uma linguagem simples, clara, tornando-se no mais lido e traduzido autor libertário de todos os tempos. Os seus livros chegaram às mais baixas camadas da população e, no final do século XIX e início do século XX faziam parte da biblioteca de camponeses e operários, nomeadamente em Portugal.

A sua obra mais conhecida é A Conquista do Pão. O pensamento de Kropotkin é classificado por ele próprio como “comunismo libertário”.

Na base desse edifício ideológico está a ideia de que o critério para o consumo de bens e serviços não assente no trabalho mas na necessidade de cada indivíduo. Na sua utopia, para além da colectivização dos meios de produção, defende a livre distribuição da produção, a extinção de qualquer sistema de salários, a orientação da produção para as necessidades de consumo e não para o lucro. Todo isso tendo em vista um sistema que consiga conciliar e satisfazer as necessidades de todos.

O Estado, no ideário deste anarquista russo, basear-se-ia num sistema administrativo em rede, formado por comunas. Cada uma reuniria os interesses sociais representados por grupos de indivíduos directamente ligados a eles. A união dessas comunas produziria a tal rede, em substituição do Estado central.

Onde foi Kropotkin buscar as suas ideias? Muito especialmente a uma pequena comunidade relojoeira que ele estudou em Sonvillier, aldeia encravada nas montanhas do Jura suíço.

A Suíça, pela sua histórica neutralidade, e até devido à sua Constituição altamente descentralizada e à tradição de democracia directa, através de referendo, tinha-se tornado na segunda metade do século XIX no porto de abrigo para milhares de refugiados políticos dos impérios austro-húngaro, alemão e russo e dos perseguidos da repressão da Comuna de Paris, em 1871.

Depois de analisar o trabalho político de grupos marxistas em Zurique e Genebra, e tendo ficado mal impressionado com o que viu, foi aconselhado a visitar a pequena comunidade anarquista de relojoeiros de Sonvillier. Estes artesãos operavam a sua pequena indústria na base de um auto-governo operário, dentro do contexto de uma federação de comunas de aldeia. Essa federação do Jura tinha sido fortemente influenciada por outra grande figura do anarquismo, Bakunin.

Segundo Martin Miller, o principal biógrafo de Kropotkin, “as reuniões que ele manteve com os operários relojoeiros revelaram a liberdade espontânea sem autoridade ou direcção vindas de cima com que ele sempre tinha sonhado”.

Isolados e auto-suficientes, os relojoeiros do Jura impressionaram Kropotkin como um exemplo que podia transformar a sociedade, se tal comunidade se pudesse desenvolver numa escala mais larga, a nível regional, nacional, depois internacional.
(continua)

Publicado em Espiral do Tempo

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