domingo, 28 de junho de 2009

Relojoaria grossa - novo exemplar no CID de Évora

A relojoaria grossa, pública, monumental, de torre ou férrea é, por excelência, aquela que marca o tempo colectivo das comunidades. Em Portugal, o primeiro relógio desse tipo terá sido instalado nos tempos de D. Fernando, na Sé de Lisboa. Com D. João V, compra-se para o país dos melhores exemplares que havia no mundo, como são os que estão no Convento de Mafra. O terramoto de 1755, por um lado, e a extinção das ordens religiosas (onde estavam os exemplares mais antigos), em 1834, deram uma grande machadada a esse património. No século seguinte, fábricas nacionais como a Reguladora de Vila Nova de Famalicão, Couzinha de Almada ou Cardina da Nazaré foram equipando torres sagradas e profanas por esse país fora. Chegou depois a electrificação, o quartzo, e o abandono. Máquinas com séculos de história foram parar à sucata ou vendidas para o estrangeiro, onde estas coisas são mais apreciadas. Resumindo - o estado da relojoaria grossa nacional é uma lástima.

Pois chega-nos agora uma notícia em contra-mão. Amanhã, segunda-feira, 29 de Junho, será inaugurado o novo relógio do Comando de Instrução e Doutrina (CID) do Exército, instalado em Évora.


O relógio, mecânico, feito de raiz, é da autoria de Hermínio de Freitas Nunes, um homem que se dedica há décadas ao restauro, manutenção e levantamento dos relógios de torre. Segundo Hermínio Nunes, o actual mostrador para o exterior, a 18 metros de altura, está em mau estado, com apenas um ponteiro, e desligado do veio, por corrosão. Mas é intenção do CID reconstruir o mostrador, em esmalte, como o original. Outra das intenções é, agora que há relógio a funcionar, acoplar-lhe um sino, para que ele possa, além de mostrar as horas, batê-las. O relógio está já preparado para isso - ligação a um martelo eléctrico, que baterá no futuro sino um toque por cada passagem de hora. A cerimónia de inauguração de amanhã serve também de despedida - será presidida pelo General Vaz Antunes, que deixa a chefia do CID, para ser colocado noutro posto.


O relógio, terminado em oficina


Vista do mostrador de serviço e ponteiros



Já a funcionar em Évora


Hermínio de Freitas Nunes na sua oficina, na Marinha Grande

Acompanhámos um dia na vida de um mestre relojoeiro especializado na reparação, restauro e manutenção da chamada relojoaria grossa, férrea, de torre ou monumental. Num panorama nacional que é um desastre, Hermínio Nunes rema contra a corrente. E o seu melhor cartão de visita são os relógios que já recuperou – andam direitos que nem um fuso, batendo as horas certas para quem os queira ouvir. Há gente assim. Que alia o gosto da reflexão, da leitura, da investigação em documentos, livros e papéis velhos, em ambientes soturnos, silenciosos; com o “meter a mão na massa”, com o barulho de limas e tornos, a sujidade natural de óleos e desperdícios, limalhas e ferro velho. E, mais raro ainda, que faz bem as duas coisas.

Hermínio de Freitas Nunes, um figueirense por nascimento mas marinhense por adopção, tanto anda pendurado em torres periclitantes a desmontar e montar relógios, como a dedilhar delicadamente papéis com séculos, em esconsos esquecidos. Uns e outros teriam muitas vezes o destino do caixote do lixo, mas Hermínio é dos tais heróis anónimos que ainda persistem num país desatento, e que procuram salvar tudo o que podem salvar, para memória futura. O património não é uma herança do passado”, costuma ele dizer. “É um empréstimo do futuro!” Passámos um dia com este autodidacta historiador, começando pela sua oficina, saltando depois por todo um raio de acção no distrito de Leiria, onde ele nos foi apresentando as intervenções que tem realizado na relojoaria grossa, pública, de igrejas, escolas, municípios.

Para Hermínio, o grande orgulho é mostrar “o antes” e “o depois”, sustentado em fotografias das peças tal como as encontrou, abandonadas às intempéries, à ferrugem, aos pombos; e o seu estado actual, depois de decapadas, corrigidas, substituídas, afinadas, pintadas e oleadas. Mas este mestre relojoeiro sabe que, mais importante do que restaurar, é manter as peças em funcionamento e, por isso, nos trabalhos que efectua inclui sempre um período de alguns anos de garantia de manutenção. Este amante do Património nasceu na Figueira da Foz, há 52 anos. Iniciou-se no mundo do trabalho na Fábrica Nacional de Vidros mas esteve lá escassos meses. Radicou-se definitivamente na Marinha Grande há 30 anos, desenvolvendo a sua actividade profissional na indústria de moldes. Tem colaboração dispersa por vários jornais regionais, com artigos de opinião, história e poesia.

Investigador da história da Marinha Grande, especialmente dos fenómenos políticos e sociais na indústria vidreira, tem dedicado especial atenção ao movimento sindical, à história da luta contra o regime de ditadura anterior ao 25 de Abril de 1974, nomeadamente o levantamento operário de 18 de Janeiro de 1934. O seu campo de investigação tem-se alargado nos últimos anos ao movimento religioso e sua influência no desenvolvimento do tecido social da Marinha Grande. Está neste momento a organizar o arquivo do Santuário do Senhor Jesus dos Milagres, Leiria.

De uma actividade de historiador, já com mais de uma década, destacamos títulos como 18 de Janeiro de 1934, Rostos (1997), Augusto Costa, um Vidreiro no Tarrafal (1998), Alvorada de Esperança, Notas Biográficas, Apontamentos para a História do 18 de Janeiro de 1934 (1999), A Irmandade do Senhor Jesus dos Aflitos (2000), A Freguesia da Marinha Grande, das suas origens ao Estado Novo (2004), Antecedentes Sociais do 18 de Janeiro de 1934 (2006) e A Elevação da Marinha Grande a Concelho em 1836 (2007). No campo da sua actividade de restauro de relojoaria grossa, férrea, de torre ou monumental, ostenta um portfólio que fala por si: intervenções nos medidores de tempo mecânicos do Santuário de Santa Maria de Vagos; Igreja de S. Francisco, Redinha, Pombal; Torre Municipal de Aljubarrota, Alcobaça; Banco de Portugal, Agência de Coimbra; Igreja Paroquial da Marinha Grande; Escola velha de Almeirim; Santuário do Senhor Jesus dos Milagres, Leiria; Torre do Mercado de Benfica do Ribatejo, Igreja Paroquial de Ançã. O seu mais recente trabalho foi no relógio da torre sineira, na Igreja de Nossa Senhora do Pópulo, Caldas da Rainha.

A empresa criada por Hermínio de Freitas Nunes, a TictacTemporis (http://www.tictactemporis.com/) “é um serviço vocacionado para o restauro e conservação de relojoaria monumental de torre e serviços complementares de conservação de sinos e campanários”, salienta. “Beneficiando de uma longa experiência de décadas nas artes mecânicas, os nossos serviços pautam-se por uma rigorosa exigência de qualidade nas diversas fases de restauro, utilizando exclusivamente artes e técnicas de serralharia mecânica tradicional, com levada componente manual”, explica.

No património nacional, o capítulo da Relojoaria Grossa tem sido particularmente triste: peças abandonadas, deitadas para o lixo, vendidas para o estrangeiro, paradas a enferrujar. O trabalho de Hermínio de Freitas Nunes e de outros começa agora a ser mais solicitado pelos poderes centrais e locais, civis, militares e religiosos, que percebem a importância da Relojoaria no todo do património colectivo. Até porque, como diria Fernando Pessoa, “não há nada de mais ridículo do que um relógio público parado”.

Adaptado de artigo saído em Cronos - Pilares do Tempo, suplemento de Relojoaria do Público, edição de 2008.

2 comentários:

  1. Interessante, boa informação! A prosa sobre Hermínio de Freitas até merecia post isolado.

    E queres um conselho?

    Faz mais parágrafos, com dois espaços, para facilitar a leitura.

    Parabéns!

    LPA

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  2. O Hermínio trabalhou na Aníbal H Abrantes, a primeira fábrica de moldes em Portugal e que chegou a ser considerada a melhor do mundo.

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