quinta-feira, 2 de abril de 2015
Há dez anos - "Leituras acidentais de um ocidental"
Leituras acidentais de um ocidental. Décima segunda crónica da série, publicada na revista Homem Magazine, em Abril de 2005.
Fernando Correia de Oliveira*
As questões de Taiwan e Hong Kong
A Assembleia Nacional Popular, o parlamento chinês, aprovou em Março uma nova lei “anti-secessão” que prevê o recurso a meios não pacíficos para recuperar Taiwan, caso a ilha declare unilateralmente a independência. As campainhas de alarme soaram imediatamente nas chancelarias de todo o mundo, como se este fosse um novo foco potencial de tensão para a segurança regional e global mas, bem vistas mas coisas, Beijing limitou-se a formalizar ainda mais uma posição que sempre declarou publicamente – a ilha a que os portugueses apelidaram de Formosa é uma província renegada da nação chinesa, que mais tarde ou mais cedo terá que voltar ao seu controlo.
Em 1949, as forças do Guomindang, lideradas pelo Generalíssimo Chiang Kai Chek, fugiram, com dezenas de milhares de civis, perante o avanço das forças comunistas do Exército Popular de Libertação, lideradas por Mao Zedong. A coberto da protecção militar (incluindo nuclear) dos Estados Unidos, a Formosa desenvolveu-se nas décadas seguintes, gozando, por exemplo, das maiores reservas de ouro per capita do mundo, e de um nível de vida dez a vinte vezes mais elevado do que o dos seus primos pobres do outro lado do Estreito.
No final da década de 70 do século passado, desaparecido Mao, o “pequeno timoneiro” Deng Xiaoping deu dois contributos decisivos para a teoria comunista internacional – abriu a China às leis económicas do mercado e inventou a fórmula “um país, dois sistemas”. Este último era dirigido especialmente a Taiwan e não a Macau ou a Hong Kong, onde depois acabou por ser aplicado.
Entretanto, na ilha, morria Chiang Kai Cheg, sucedia-lhe dinasticamente o filho, mas no final do século XX ascendia ao poder uma classe de políticos autóctones – Taiwan é há relativamente pouco tempo parte da China, foi conquistada no séc. XVI pela dinastia Qing, os taiwaneses, etnica e culturalmente diferentes dos chineses han, sempre desdenharam o ocupante, sempre procuraram algum grau de autonomia. Nos anos 80 e 90 do século passado, a sociedade taiwanesa abriu-se às reformas políticas – elegeu primeiro o poder autárquico, depois o poder legislativo, culminou o processo com a eleição de um Presidente (natural da ilha), por votação directa e universal. Pela primeira vez na milenar história da China, há uma sociedade chinesa totalmente democrática, segundo os cânones ocidentais.
Com as reformas económicas iniciadas no continente, o investimento de Taiwan foi aumentando, especialmente nas províncias adjacentes, mesmo ali ao lado, tornando os capitalistas formosinos nos maiores empregadores da zona. Os laços económicos entre a China comunista e Taiwan só têm aumentado desde então. Há até cada vez mais empresários de Taiwan com vidas paralelas – famílias e residências na ilha, outras famílias, outras residências, no continente, numa bigamia muito tradicional da sociedade chinesa medieval.
As relações entre Beijing e Taibei sempre andaram aos altos e baixos, com cíclicos períodos de tensão no Estreito de Taiwan – geralmente motivados por manobras navais da República Popular a escassas dezenas de metros da costa da ilha, enervando civis e militares.
Os sentimentos independentistas em Taiwan têm saído reforçados nos últimos actos eleitorais – os candidatos adeptos da declaração unilateral de independência vão ganhando, mercê do apoio de uma juventude que não sabe o que foi a Guerra Fria e que se considera “superior” aos primos mais pobres e menos sofisticados do continente. Há uma identidade taiwanesa? Parece que sim, embora as mudanças radicais na própria República Popular da China – mais abertura, mais riqueza, mais cosmopolitismo – pareçam poder facilitar afinal a reunificação.
Outro factor que poderia ajudar a essa reunificação é o de a fórmula “um país, dois sistemas” estar a funcionar desde 1997 em Hong Kong e desde 1999 em Macau, com Beijing a cumprir, genericamente, a promessa de deixar, pelo menos durante meio século, os dois territórios funcionarem com ampla autonomia política e muita maior liberdade cívica do que no resto do continente chinês. Mesmo assim, isso parece não entusiasmar Taiwan – a classe média da ilha, reforçada por mais de meio século de “independência” de facto, apoiada por factores étnicos, olha mais para o exemplo de Singapura, onde uma sociedade etnicamente chinesa se conseguiu emancipar da Federação Malaia e singrar o seu próprio caminho – com grande êxito.
Os taiwaneses desceram maciçamente às ruas, no início deste mês, para defender o seu estatuto de “independência” e manifestar-se contra a “chantagem psicológica” de Beijing. O Ocidente, com os Estados Unidos à cabeça, tentam convencer Beijing de que a nova lei “anti-secessão” só contribui para aumentar a tensão na região e não para resolver o problema. Washington tem, ao mesmo tempo, refreado os sentimentos independentistas de Taiwan, pois sabe que Beijing nunca permitirá a fragmentação daquilo que considera o seu Estado. A Rússia, que como a China é um império sem ultramar, onde as suas colónias se encontram bem junto das suas fronteiras terrestres, disse “compreender” a nova lei de Beijing.
O actual Presidente de Taiwan, Chen Shui-bian, reiterou no seu discurso de tomada de posse o compromisso de não declarar a independência da ilha, desde que Beijing não puxe da cartada do uso da força.
Mediante os interesses económicos em jogo – investimentos maciços, criação de emprego – seria pouco provável que a China esticasse a corda até ao ataque militar à ilha. Mas, se isso acontecesse, os Estados Unidos teriam que defender Taiwan, mercê de um Tratado assinado no auge da Guerra Fria. O Presidente George W. Bush reafirmou que Washington “fará tudo o que for necessário” para defender Taiwan, mas os interesses económicos norte-americanos na China, a necessidade do voto de Beijing no combate ao terrorismo internacional ou do canal chinês para ir controlando o regime louco da Coreia do Norte tornam Washington cada vez mais “refém” do regime comunista chinês. Para os optimistas, tudo isto não passa de um jogo de poker, como muitos que Beijing tem jogado com a comunidade internacional (e quase sempre com êxito). Para os pessimistas, a solução militar escrita agora em letra de forma (mas sempre admitida pelos comunistas) é uma ameaça para levar muito a sério. O que seria, desde já, necessário, é que ambas as partes evitem um clima de “resposta e contra-resposta”, escrevia-se há dias no Taipei Times. Isso seria um cenário apocalíptico. “Aquilo que verdadeiramente separa a China de Taiwan não é a soberania, mas saber-se até que grau a democracia pode radicar-se e consolidar-se”, defende o mais importante jornal de língua inglesa da ilha.
Outra questão, menos dramática, mas também de grande importância para a região e mesmo para o mundo diz respeito à sucessão ocorrida no poder em Hong Kong. A antiga colónia britânica foi reintegrada na mãe-pátria em 1997, o primeiro território a experimentar a fórmula “um país, dois sistemas”. A transição, que muitos previam turbulenta, catastrófica, decorreu de forma bastante pacífica, até do ponto de vista político. Mas Hong Kong teve algum azar nos primeiros tempos – crise cambial na Ásia, gripe das aves... Aquela que ainda é uma das maiores praças financeiras do mundo não perdeu de um dia para o outro o seu glamour, como vaticinavam os profetas da desgraça – que não achavam os continentais competentes nem para mudarem as lâmpadas dos elevadores, á medida que elas se fossem fundindo... Mas a crise instalou-se lentamente no território, que tem cada vez menos turistas – os motivos são vários: temor de atentados terroristas, de saúde pública. E há quem diga que o primeiro líder do território, escolhido directamente por Beijing, Tung Cheee-hwa, um capitalista falido a quem, a dado momento, os comunistas emprestaram dinheiro, teve falta de carisma e política errática para manobrar o sofisticado barco.
Tung demitiu-se há um mês, alegando a idade e problemas de saúde, sendo rapidamente substituído por Donald Tsang, de 60 anos, um vigoroso “civil servant” que pertenceu a governos da então colónia e que é acusado por alguns sectores de ser demasiado “pró-britânico”. Mesmo assim, foi a escolha de Beijing.
Mas os problemas de Hong Kong poderão não estar na sua liderança e sim na inexorabilidade da História – é que a colónia consolidou-se como central financeira, de serviços e de lazer de luxo depois de 1949, quando substituiu Shanghai nesse papel. Ora, agora, Shanghai navega com ventos mais favoráveis, as suas raízes cosmopolitas só precisavam de ser de novo regadas para que a grande metrópole voltassem a ser o que foi na primeira metade do século XX. E tornar-se, assim, na principal concorrente de Hong Kong.
*Jornalista e investigador
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