sexta-feira, 13 de agosto de 2010

Meditações - Os relógios de pulso versus relógios de bolso

Naquela tarde de Reis, em que num “five o’clock” da legação inglesa, lhe fora apresentado, Jaime de Souzelas sentiu pela elegante baronesa de Malvim uma paixão que nunca mais conseguiu dominar.

A baronesa, que enviuvara havia dois anos, tinha apenas vinte e seis. Alta, elegante, rosto oval e levemente moreno, emoldurado por um abundantíssimo cabelo cor de asa de corvo, busto cheio e escultural, ela era na verdade uma linda mulher. O seu maior encanto, porém, consistia nos olhos, uns olhos aveludados e profundos, ungidos de uma grande meiguice, onde, como numa cisterna árabe, havia alguma coisa de misterioso.

Desde que o marido lhe morrera, era esta a primeira vez que ela aparecia na sociedade. Realçava-lhe a formosura o vestido de seda preta com guarnições de renda branca. Jaime de Souzelas, adido da legação portuguesa em Berna, gozando de uma larga licença em Lisboa, era também um rapaz formoso, com a grande vantagem de o saber e de confiar na sua boa estrela. Amou-a. Voltou a vê-la meia dúzia de vezes. Ela acolhia-o com simpatia e falava-lhe com uma predilecção que chegou a tornar-se reparada. Animado com estas provas de deferência, numa tarde serena do fim de Janeiro em que se encontravam sozinhos no jardim de uma amiga comum, o diplomata tomou-lhe a mão e disse, comovido:

- Amo-a!
A baronesa sorriu.
- Já o sabia – respondeu ela.
- Disseram-lho os meus olhos?
- Disse-mo a lógica.
- Como a lógica? – tornou ele, um pouco desconcertado e retirando a mão.
- A avaliar pelas declarações que tenho ouvido desde que reapareci no mundo, não há homem algum meu conhecido que me não ame. Ora o senhor é homem, e conhece-me. Portanto, ama-me.
- É um gracejo?
- Não. É um silogismo. Aprendi filosofia no colégio, e ainda me não esqueci do que estudei, como vê.
- Pode haver muitos homens que lhe tenham declarado o seu amor. Mas nenhum a ama como eu.
- Todos os homens amam da mesma forma. O amor, para as mulheres, é um fim. Para os senhores, um meio… de conseguirem um dado objectivo.
- Parece-me que a engana a sua pouca ciência da vida. Mas não quero estar a discutir consigo.
- O que pretende, pois?
- Que me diga onde e quando poderei encontrá-la a sós.

Ela recuou um pouco, num assomo de dignidade ofendida.

- Não será pretender muito? – perguntou.
- É pouquíssimo, para quem a ama tão doidamente.

Neste momento a dona da casa avançava para eles.

- Baronesa! – insistiu Jaime de Souzelas, baixando a voz. – Onde poderei falar-lhe sem testemunhas?
- Em minha casa.
- Quando?
- No dia 29 de Fevereiro, à meia-noite – retrucou ela com um sorriso significativo.
- Obrigado! – disse ele num murmúrio, para não ser ouvido pela senhora que se aproximava.

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Jaime de Souzelas entrou em casa transbordando de felicidade. Estava-se a 30 de Janeiro, faltava um mês apenas. Correu ao calendário. Queria marcar o auspicioso dia com uma cruz a tinta vermelha. E só então, folheando o almanaque, reparou em que tinha sido ludibriado. O mês de Fevereiro tinha vinte e oito dias apenas.

Na manhã seguinte, desesperado e cheio de mau humor, subia as escadas do Ministério dos Negócios Estrangeiros, onde declarava prescindir do resto da licença, e solicitava guia para se apresentar imediatamente na sua legação.

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Decorreram treze meses. Quis a sorte que o novo ano fosse bissexto. E precisamente na manhã do dia 29 de Fevereiro, Jaime de Souzelas apeava-se do “expresso” de Paris na estação do Rocio.
Foi hospedar-se no “Palace”, onde passou toda a tarde descansando, Às oito e meia da noite metia-se num trem e mandava bater para casa da baronesa.

A formosa titular costumava receber às quartas-feiras. E era precisamente quarta-feira esse dia. Os criados, sem mais preâmbulos, introduziram-no no gabinete onde a baronesa estava lendo um jornal, sozinha ainda.

- Por cá? – disse esta, surpreendida.
- Cheguei hoje – respondeu o diplomata inclinando-se e beijando-lhe a mão.
- Vem descansar uma temporada?
- Venho exigir o cumprimento de uma promessa – volveu o rapaz, sentanndo-se.
- Qual promessa?
- A que me fez há mais de um ano no jardim da Condessa de Montejunto. São hoje 29 de Fevereiro, e espero ansiosamente pela meia-noite.
- Vai sofrer uma decepção – tornou ela sorrindo. – Recebo hoje algumas amigas, que retiram inevitavelmente às onze horas. Deito-me imediatamente, e adormeço num instante. Para mim, que ainda não frequento bailes nem teatros, não há meia-noite.
- Nem hoje, ao menos, para cumprir o prometido?
- Nunca! É essa uma hora que o meu relógio não marca.

E indicou um pequenino relógio de ouro com brilhantes, encaixado numa pulseira de platina, que lhe rodeava o pulso esquerdo.

- Tem um lindo relógio – disse Jaime de Souzelas, procurando uma diversão à conversa.
- Lindo, não sei. Bom, é, com toda a certeza. Regula como um cronómetro.
- É um caso raro – contrapoz o diplomata. – Os relógios de pulso asneiam com facilidade. Atrasam-se ou adiantam-se com frequência.
- Sim? E a que é devido isso?
- Como sabe, a Suíça é um país de relojoeiros. Posso, portanto falar de cátedra nesse ponto. Os fabricantes de relógios deram pelo percalço que citei durante a Grande Guerra. Notou-se que, no momento em que os soldados se preparavam para combater, os maquinismos dos relógios de pulso que eles usavam entravam de trabalhar mais apressadamente. Ribombava o canhão, chovia a metralha, os “poilus” abandonavam os parapeitos das trincheiras e lançavam-se ao assalto. No fim do combate, era fatal: todos os relógios se encontravam adiantados uma hora ou mais.
- É curioso! E os relógios de bolso?
- Marcavam a hora que deviam marcar.
- E como se explica o facto?
- Há já uma teoria, que julgo verdadeira. Ao contacto da pele, um relógio de pulso recebe todas as vibrações que dos centros nervosos se transmitem à periferia por intermédio dos nervos. Quando o portador se encontra num estado especial de excitação, o seu pequeno maquinismo funciona como um estesímetro, de nova espécie, e o avanço dos seus ponteiros traduz o excesso de vida que vai a dentro de um cérebro ou de um coração. Milhares de experiências feitas ulteriormente mostram que o relógio de pulso se atrasa nos moribundos e avança espantosamente nos duelistas e nos apaixonados.
- Nesse caso, o seu deve andar muito adiantado.
- O meu é de algibeira, e a esses serve a roupa de isolador.

Fez-se um silêncio de alguns minutos. Jaime de Souzelas levantou-se por fim.

- Vai-se embora? – perguntou a baronesa.
- Não. Vou sentar-me ao seu lado – respondeu o adido, juntando a acção à palavra.
- Para quê?
- Para lhe dizer, mais uma vez, que a amo.
- Sem esperança?

- Cheio de esperança. Pois somos ambos novos, eu adoro-a, tenho a certeza de que lhe não sou indiferente, e havemos de separar-nos assim, sem que mutuamente respiremos o olor forte de mocidade que os nossos seres exalam? A baronesa é saudável, formosa, viúva há três anos, e quer pôr de parte para sempre, como um vestido que passou de moda, o direito de ser feliz, a ânsia de viver que é a voz mais poderosa do nosso instinto e a única razão da nossa existência? Sabe que a amo, que passei em Berna um longo ano pensando em si, que venho de fazer uma viagem de quatrocentas léguas só para a ver e apertar nos braços, e tem a crueldade de me deixar retirar, com um aperto de mão frio e gelado, como se eu fosse uma dessas visitas que vêem às dez horas para partirem às onze?

Tomara-lhe a mão direita, que estreitava com ternura na sua mão ardente. E continuou:

- Deixe-me dizer-lhe, uma e mil vezes mais, que a amo, e espero de si toda a ventura que uma mulher com as suas qualidades pode conceder a um homem. Há nos seus olhos, profundos, como um lago dos Alpes, um mundo de promessas; e os seus lábios, como os da Sulamita, devem destilar leite e mel. Como quer que eu não apeteça banhar-me no eflúvio desses olhos e sorver num beijo infinito a infinita doçura da sua boca? Os seus olhos foram feitos para adejar pelo azul, para envolver o homem amado num fluído penetrante de carícias, - não para rastejar pelo solo num pudor convencional e desarrazoado; e a sua boca, quando diz “não”, comete um crime contra a Natureza, contra a Humanidade, contra a própria Vida!

Falando, enlaçara-lhe a cintura; e era junto da sua face, escaldando-a com o hálitp ardente, que murmurava estas frases.

Ela desprendeu-se, num empuxão violento que lhe pôs no rosto uma larga mancha de carmim. E disse apenas, com voz fraca:

- Deixe-me! Parta! Deve ser tarde.

E olhando o seu relógio de pulso, com uma exclamação de surpresa:

- Ah! É meia-noite certa!

Disfarçadamente, Jaime de Souzelas puxou pelo seu relógio e teve um sorriso de triunfo. Eram, apenas, nove e quarenta e cinco…

Campos Monteiro (1876-1934), in Moeda Corrente

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