Ferreira Gullar foi declaro hoje Prémio Camões 2010. Estação Cronográfica associa-se à ocasião recordando um trecho da sua obra Crime na Flora, versando um Mido Multifort Automatic que o poeta usava no pulso e que parou... Enquanto no seu jardim nasciam relógiosflor...
Manhãzinha as abelhas iam colher o pólen e minha irmã ia colher as flores: lá achou o elmo de louça, entre os capins mas, criança, pensou que se tratasse dum caco de astro. Trouxe-o, e ele veio cheio de pólen como uma corola.
Ao vê-lo julguei ver uma xícara de porcelana bordada que começasse a virar ostra ou mesmo um fragmento de urinol imperial. Era um elmo. Expliquei-lhe que o elmo e o fumo são da mesma idade. Ela sorria ouvindo e, levantando-se, pôs dentro dele as flores que deixara sobre a cadeira e colocou-o como um jarro no centro da mesa.
Havia ao lado um relógio-despertador, com seus ponteiros e seus números sobre o alvo mostrador de esmalte - uma flor durável. O melhor lugar para um relógio - lhe disse – é no meio dum canteiro de açucenas.
só uma semana mais tarde reparei que aquele elmo era na verdade um crânio - o que restava do esqueleto de um homem ou, pelo menos, o que dele se achara até então. Fui até o jardim, que fica ao lado da casa, e comecei a busca minuciosa dos restos mortais do desconhecido. O dia era claro e a terra do jardim estava seca e solta, apunhalada de, caules marrons de roseiras, de violetas, de açucenas, hortênsias, jasmins, cravos-de-defunto, lírios, rosmaninhos, miosótis, papoulas, amores-perfeitos, magnólias, alecrins, perpétuas, dálias, príncipes-negros, sempre-vivas, angélicas, lilases, brincos-de-princesa, boas-noites, boninas e girassóis.
Era tudo visível. De joelhos no solo fofo e esquivo, procurava com os dedos entre as folhas caídas, espiando entre as flores paradas no ar, planetárias, e cujo sol (oculto) bem podia ser aquela caveira de osso de louça posta feito jarro em nossa varanda. Nada encontrei. À tardinha prossegui na busca até que a noite chegou. Em vão.
Na terça-feira voltei à pesquisa do jardim. Em vão. Na quarta, em vão. Na quinta, em vão. Na sexta, em vão. No sábado, em vão. No domingo (belo e rico), em vão. De novo na segunda-feira, em vão. Na terça, em vão. Na quarta, em vão. Quinta, em vão. Sexta, em vão. Sábado, no vão de uns capins, achei um anel, alvo como prata.
Aproximando-o dos olhos, para melhor verificá-lo, percebi que dentro dele qualquer coisa pulsava; como um relógio. Procurei, nele, por onde abri-lo. Em vão. Um relógio sem mostrador, parecia-me esquisito demais. Escutei-o, atentamente: tic tic tic tic tic tic tic tic tic tic tic tic tic tic tic tic tic tic tic tic tic tic tic tic tic tic tic tic tic tic tic tic tic tic tic tic tic tic tic tic tic tic tic tic tic tic parou!
Fiquei atônito um segundo: meu relógio de pulso, em meu pulso, marcava meio-dia em ponto, e estava parado. Esbocei um sorriso de compreensão ao meu Mido Multifort Automatic. No círculo astronômico do mostrador branco a agulha negra em que se solveram os dois ponteiros apontava enigmática para a altura silente vertiginosa do verão. Verão - eu disse - ainda verão – eu disse - Verão - eu disse - e o vocábulo se fundiu à agulha do astro o sol era no alto uma coroa esplendendo exatamente sobre a minha cabeça meio dia a escuridão da claridade, o segredo do
ouro que reunia tudo em meu redor.
O jardim com suas folhas abertas e fixas. Olhei a açucena: ela moveu as pétalas, abriu-se, surgiu de dentro um mostrador de relógio, e a zoada de seu mecanismo foi se instalando naquele espaço aceso tic tic tic tic tic tic tic tic tic tic
Olhei o crisantemo: a corola girou, lenta, girou e dois ponteiros azuis brotaram-lhe do cálice; parou a flor: sobre o mostrador de ouro os ponteiros marcavam meio-dia tic tic tic tic tic tic tic tic tic tic tic tic tic tic tic tic tic tic tic tic tic tic tic tic tic tic tic tic tic tic tic tic tic tic tic tic tic tic tic tic tic tic tic tic tic tic tic tic tic tic tic tic tic tic tic tic tic tic tic tic tic tic tic tic tic tic
meu olhar acompanhava todas as metamorfoses, e já dezenas de flores se transformaram relogioflor negros relogioflor rubros relogiofior verdes relogioflor níquel relogioflor azuis relogioflor lilases relogiofior amarelos relogioflor prata relogioflor marrom relogiofior água tic tic tic tic tic tic tic tic tic tic tic tic tic tic tic tic tic tic tic tic tic relogioflor ouro relogioflor platina relogio flor tic tic tic tic tic tic tic tic tic tic tic tic tic tic tic tic tic tic tic tic tic tic relogioflor íris relogioflor lírio tic tic tic tic tic tic tic tic tic tic tic tic tic tic tic tic tic tic tic tic tic tic tic tic tic tic tic tic tic tic tic tic tic tic tic tic tic tic tic tic tic tic relogioflor flor relogioflor hidrogênio relogiofl tic tic tic tic tic tic tic tic tic tic tic tic tic tic tic tic tic tic tic tic tic tic tic tic tic tic tic tic tic tic tic tic tic tic tic tic tic tic tic tic TIC TIC TIC TIC TIC TIC TIC TIC TIC TIC TIC TIC TIC TIC TIC TIC TIC TIC TIC TIC TIC TIC TIC Relogiofiorverderelogioflorrubrorelogioflornegrorelogio
florpratarelogioflorazulreloTICTICTICTICTICTICTIC TICTICTICTICTICTICTICTICTICTICTICTICTICTIC
TICTICTICTICTICTICTICTICTICTICTICTICTICTIC TICTICTICTICTIC
florpratarelogioflorazulreloTICTICTICTICTICTICTIC TICTICTICTICTICTICTICTICTICTICTICTICTICTIC
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atordoado afastei-me até o terraço a alguns metros do jardim; a esta distância a zoada era suportável. Acendi um cigarro e fiquei a fumá-lo, recostado a uma coluna, o pé contra a parede. O jardim zunia como se ocupado por um exército de bichos metálicos.
Dormi mal aquela noite, pois no mais retirado quarto da casa chegava a trepidação do jardim. Vim para a janela curtir minha insônia. Lá na escuridão do quintal, o jardim batia freneticamente. E assim noites e noites e noites e noites.
Veio o inverno. Os relógios vicejavam estrelados em suas corolas de cor. Pelos algarismos coloridos os ponteiros negros azuis rubros assinalavam as múltiplas e surpreendentes ordens do tempo
O verão voltou com um vento áspero soprando. As pétalas se desprendiam. O sol amarelecia a folhagem.
O verão voltou com um vento áspero soprando. As pétalas se desprendiam. O sol amarelecia a folhagem.
O jardim ia calando, cansavam-se um a um os seus múltiplos relógios. Enferrujavam.
Da janela do quarto, vi o primeiro que se abriu como um estojo e despediu no vento uma carga de sementes. Outros se abriram. O quintal se povoava de grãos esvoaçantes. Uma brisa mais forte lançou uma centena deles contra meu rosto e me encheu o quarto.
Uma semana, e o jardim parecia morto. Das hastes pendiam os relógios envelhecidos, abertos como bocas de ferrugem, vazios. Os mostradores coloridos mofavam, desbotavam. Caminhei entre eles, examinando-os, quando uma zoada débil
tic tic tic tic (interrompeu) tic tic
Detive-me atento para localizá-la... Era um pequeno relogioflor níquel que permanecia fechado e ainda funcionando penosamente.
Toquei-o: trabalhou um instante e parou de novo. Temtei abri-lo - impossível. Doía-me vê-lo assim enguiçado e cheio de sementes. Bem, só um relojoeiro daria jeito na situação. Saí atrás de um catálogo telefônico.
Mas viajei para a Europa e me esqueci. Certa manhã, na Praça de São Marcos, desvendei o mistério do crânio. Tinha sido urinol de uma das filhas de Carlos Magno; depois, capacete de um dos mais valentes soldados do rei, apaixonado da moça; fora também crânio de herói, e, antes, muito antes, almofariz de Osíris; peça de ritual na Trácia, o Santo Graal, taça de festim, coroa imperial, tigela, jarra, ilíaco de inseto, píxide, dentadura postiça, corola de flor interplanetária e cinzeiro.
Hoje é, de novo, urinol. Amanhã terá outro nome e outra glória, talvez. Eu mesmo já o faço minha escarradeira, já o encho de hortênsias, já nele mijo e defeco. Já o contemplo a um canto inútil e esplendente.
Ou tomo-o nas mãos e o escuto, e ele soa como um búzio. O mar, porém, que ecoa nele é outro. É um mar que nunca vi, cujo nome não conheço, que não imagino e que prefiro não inventar.